Tão urgente quanto a reforma política e tributária, o debate sobre a reforma urbana subiu ao topo da agenda em meio à séria crise de saúde pública causada pela infestação do mosquito Aedes aegypti, transmissor do zika e da chikungunya, além dos vírus causadores da dengue e da febre amarela. Um olhar para além da saúde pública se faz necessário para entender o que nos faz conviver com esse mosquito há décadas. Para tratar da complexidade do tema, a pesquisa Região e Redes ouviu a professora livre docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), Ermínia Maricato. Além de estudiosa do tema, Maricato formulou a proposta de criação do Estatuto das Cidades e do Ministério das Cidades. É autora dos livros O impasse da política urbana no Brasil e Brasil cidades (Vozes, 2011). “Não adianta fazer o urbanismo do espetáculo passando por cima de décadas de demandas atrasadas”, afirma a professora, que reconhece nos novos movimentos sociais uma esperança de discussão do direito à cidade.

 

Região e Redes: Grande parte da infestação do mosquito Aedes aegypti e da prevalência das doenças dele decorrentes são notificadas em bairros pobres e periféricos. Como esse problema é avaliado nas discussões sobre desenvolvimento urbano?

 

Ermínia Maricato: Vemos nas periferias quatro problemas seríssimos na área do saneamento: água, esgoto, drenagem de águas fluviais e coleta de resíduos sólidos, que vão formando barreiras. Córrego não é mais córrego. É área de descarte de lixo. Ali se tem a condição perfeita para a produção de mosquito. Estou falando de casos de São Paulo, Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre. Em cidades praianas, o problema é ainda mais grave: tem as palafitas, os mangues. Mas a política urbana foi reduzida. É voltada para o mercado imobiliário com o [Programa] “Minha Casa, Minha Vida”, expulsando os pobres para os conjuntos habitacionais fora da cidade. Foi assim [que ocorreu] o fomento de uma especulação imobiliária fantástica.

Esqueceu-se da cidade dos pobres, que depois do boom imobiliário se expandiu mais ainda. Esquecemos das políticas públicas de saneamento e habitação. Construíram casas sem olhar onde é local de habitação. Não cabe na cabeça dos economistas que a localização é uma variável econômica. Se você constrói fora da cidade, depois tem que levar a cidade para lá. Isso é caríssimo. Custa caro o deslocamento diário das pessoas até as fontes de trabalho e de emprego.

Desde 2007 percebo que os espaços institucionais estão mortos. Por isso, defendi que tínhamos que atuar na sociedade, nos movimentos sociais. Nós temos vivido uma absoluta morte do pensamento técnico e científico, uma valorização do senso comum e um recrudescimento do pensamento nazifascista. Ainda assim algumas cidades tem avançado muito apesar do cenário adverso. Por exemplo, São Paulo, que é a capital do capital, é a capital da classe média da ideologia do condomínio, tem tido avanços importantes dentro de uma conjuntura bastante desfavorável.

 

RR: Se o saneamento é básico e com impactos em diversas áreas, porque ainda não aparece como prioridade dos governos?

 

EM: Saneamento trata de quatro questões: água, esgoto, drenagem e resíduos sólidos. Se você não coleta os lixos, não se salvam os cursos d’água das cidades. O lixo vai direto para lá.

Em São Paulo, a capital do capital, os rios e córregos são canais de esgotos. Para piorar, a engenharia brasileira disseminou o tamponamento de córregos com avenidas asfaltadas em cima. Isso não resolve problema algum. Só piora, e é caro.

No Brasil, temos que tirar os mercadores das decisões sobre o investimento do dinheiro. Isso tudo tem a ver com financiamento de campanha. Por isso, tem que acabar com esse financiamento empresarial, porque eles passaram a definir quais obras seriam feitas. Anos atrás, nós lutamos aqui em São Paulo para cancelar o início das obras de um túnel que não tinha prioridade para a cidade e ia custar R$ 1,5 bilhão. Era o túnel da operação Águas Espraiadas, ura uma obra imobiliária e não viária. Nem ônibus passava pelo projeto do túnel. Mas é uma obra definida pelas empreiteiras e pelo então prefeito. O que aconteceu com as prioridades?

 

RR: E o papel do saneamento para evitar a proliferação de mosquitos?

 

EM: Saneamento deveria ser a prioridade. A falta de drenagem de águas fluviais cria os mosquitos. O córrego não pode ficar cheio de lixo parado. Por isso, precisamos recuperar rios, córregos. Temos poças que não acabam mais. Mas não. Para afastar o mosquito joga-se veneno.

A questão do saneamento é fundamental e básica nessa discussão sobre o combate à malária, febre amarela, dengue e à febre do zika e do chikungunya. Nós temos hoje mais de 2 milhões de pessoas em áreas de proteção de mananciais na Região Metropolitana de São Paulo. Não é um problema de um prefeito, mas de muitos prefeitos e do governador.

 

RR: Como está definida a responsabilidade pelo saneamento entre os governos?

 

EM: A competência para o desenvolvimento urbano não é federal. É municipal em casos de municípios isolados. E é metropolitana quando compartilhada entre estado e município. Agora nós temos o Estatuto da Metrópole, mas tudo isso foi esquecido. O que resultou desse período todo foi um arcabouço legal que tem seu ápice com a criação do Estatuto das Cidades e que o judiciário ou os operadores do direito desconhecem solenemente. É muito impressionante você ver juiz dar despejo ignorando totalmente a lei. Hoje, se você olhar a Constituição Brasileira, o Estatuto das Cidades e os Planos Diretores, verá que não é simples determinar o despejo de uma comunidade. Até porque, muitas dessas propriedades, sem um registro muito correto, estão cumprindo a função social da propriedade, prevista na Constituição e no Estatuto das Cidades.

É importante que a questão urbana seja de âmbito local. Conquistamos isso na Constituição de 1988. Dizíamos que era preciso prestigiar a democracia local. Então, o desenvolvimento urbano, a questão do saneamento e do transporte são de competência urbana local. O próprio governo federal, em vez de cobrar dos municípios, passou a centralizar muitas coisas. Os movimentos sociais também fizeram com que o governo federal decidisse mais. Mas não é competência federal decidir sobre a ocupação do solo de uma cidade ou região metropolitana. No máximo pode estabelecer diretrizes.

 

RR: Existe alguma estratégia para que as questões referentes às cidades sejam pensadas sob uma ótica regional?

 

EM: Existe. Foi aprovado no ano passado o Estatuto das Metrópoles (http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13089.htm). Aliás, nós somos ótimos com leis. Fomos elogiados na ONU pelo arcabouço legal que avançamos. Em 2005, foi aprovada a lei de consórcios públicos, que é essa que permite aos municípios se organizarem nas regiões. Temos a Lei do Saneamento Básico, de 2007. A dos Comitês de Bacias, que são obrigatórios e que são intermunicipais. A Política Nacional de Mobilidade Urbana, de 2012, a Lei de Resíduos Sólidos, de 2012. Tivemos nos últimos 30 anos uma reforma legal geral. Existe a orientação para se ter uma “consertação” regional.

 

RR: Então, o que impede de avançarmos nesse sentido e de forma mais rápida?

 

EM: A questão é de poder político. Na questão urbana como um todo, nós mais avançamos quando não tínhamos dinheiro. Isso é incrível. Foi nas décadas de 1980 e 1990. Avançamos no sentido de combate à desigualdade, para ampliar a democratização com a participação popular nos conselhos e com orçamento participativo. Claro que o problema do saneamento é urbano e é territorial, mas o engajamento da sociedade é fundamental. Não vamos resolver só pedindo para as pessoas tirarem água do pratinho para evitar o mosquito. Mas a mídia está criando uma condição nesse país que não tem quem se engaje. Porque parece que são todos bandidos, corruptos, sacanas. É uma desinformação diária fantástica o que está em curso.

 

RR: O saneamento é um dos pontos chaves na questão urbana no cenário atual? Além das doenças transmitidas por mosquitos, quais são os indicativos de que a reforma urbana é imprescindível no Brasil?

 

EM: A necessidade da reforma urbana salta aos olhos quando se constata as condições de vida da maior parte dos trabalhadores que vive segregada nos bairros periféricos ou em municípios-dormitórios. Ou quando se observa o sacrifício diário que é imposto nos transportes coletivos. Um capítulo especial tem sido dedicado às mulheres e jovens. Um grande exército de trabalhadoras domésticas (aproximadamente 30% de chefes de família são mulheres nas regiões metropolitanas) abandona seus filhos em bairros periféricos para passar o dia trabalhando e circulando com a finalidade de obter rendimentos que não passam de dois salários mínimos. Os jovens vivem uma espécie de “exílio na periferia”, já que não há transporte acessível e eficiente para sair do bairro, que, muitas vezes, não tem escolas adequadas, centros esportivos e culturais. Eu ouvi queixas de jovens que não podiam ir ao centro ver um show ou filme e voltar para casa após a meia-noite, pois os ônibus não circulam após esse horário.

A vida nessa “subcidade” não está imune às imposições da máquina de alienação: felicidade é consumir. A violência é um resultado absolutamente visível e previsível, potencializada por organizações criminais que ocupam o espaço na ausência do Estado ou, por outro lado, potencializada pela sua presença, por meio de uma polícia violenta que conhece raça e cor. No mais, predomina a política do favor.

Reforma urbana é direito à cidade. É a democracia urbana. É a antibarbárie. Reforma urbana é a luta de classes reconhecida nas cidades, enquanto palco de relações sociais.

Outros aspectos da nossa realidade, que reafirmam a necessidade da reforma urbana, dizem respeito ao meio ambiente. A forma de expansão descontrolada das metrópoles no Brasil – e elas fornecem um modelo para as demais cidades – compromete com esgotos domésticos, os rios, córregos, lagos, lagoas e praias. Os mais pobres não cabem nas cidades – mais de 80% do déficit habitacional encontram-se nas faixas entre zero e três salários mínimos – e, como precisam inevitavelmente de um lugar para morar, ocupam encostas íngremes, mangues, dunas ou Área de Proteção de Mananciais (APM).

Em São Paulo, aproximadamente 2 milhões de pessoas moram nas APM. E isso não se dá por falta de leis de proteção ambiental. Essas áreas não interessam ao mercado imobiliário devido à legislação proibitiva. São as áreas que sobram para os que não têm lugar na cidade formal: áreas de proteção ambiental e áreas de risco de desmoronamento. Outros aspectos do desastre ambiental, decorrentes desse predatório padrão de uso e ocupação do solo, estão na impermeabilização contínua da superfície da terra, incluindo o tamponamento de córregos, o que acarreta frequentes enchentes, poluição acentuada do ar e expansão horizontal desmedida, reforçando a dependência em relação ao automóvel.

 

RR: Como o nível de desenvolvimento brasileiro contribuiu com a atual situação urbana dos grandes centros brasileiros, incluindo os problemas de saúde pública?

 

EM: A marca do subdesenvolvimento está presente nas características da rede de cidades com grandes metrópoles que centralizaram e centralizam as relações econômicas com o interior e o exterior – esse foi um dos principais objetos do livro Imperialismo e Urbanização na América Latina, organizado por Manuel Castells. E está também nas características intra-urbanas. Apesar da reestruturação produtiva, globalização, financeirização e ideário neoliberal, eu continuo achando que o viés patrimonialista assegurou às elites brasileiras uma relação vantajosa diante dos interesses capitalistas internacionais na produção das cidades. Estou de acordo com [Carlos] Lessa e [Sulamis] Dain. A captura da renda fundiária ou imobiliária são prerrogativa dessas elites locais ou nacionais. De um lado, um mercado altamente especulativo e, de outro, a segregação, exclusão ou apartheid territorial remetendo grande parte da população para fora das cidades (ou para favelas). São duas partes da mesma moeda.

A autoconstrução ilegal da moradia fora das áreas urbanizadas é determinada pelos baixos salários e pelo mercado restrito e excludente. À industrialização dos baixos salários corresponde a urbanização dos baixos salários. Por causa desse problema estrutural, o Estado não tem o controle sobre o uso e a ocupação do solo urbano em toda sua extensão. A legislação urbanística se aplica apenas a uma parte da cidade que é dominada pelo mercado imobiliário capitalista, stricto sensu. Esse padrão de uso e ocupação do solo, que tem um exemplo nos municípios-dormitórios das regiões metropolitanas, não pode ser desligado da baixa e precária mobilidade decorrente da pouca importância dada aos transportes coletivos.

 

RR: É possível vencer esse atraso?

 

EM: Durante muitos anos eu achei que era. Retomamos a proposta de reforma urbana iniciada em 1963 e, na luta contra a ditadura, construímos um movimento nacional forte e diverso, com participação de lideranças sociais, sindicais, ONG, pesquisadores, professores universitários, urbanistas, engenheiros, advogados, assistentes sociais, sanitaristas etc. Elegemos parlamentares, prefeitos e até senadores. Conquistamos um significativo arcabouço legal [Constituição Federal de 1988, Estatuto da Cidade, Planos Diretores Participativos, Marco Regulatório do Saneamento, Lei Federal dos Resíduos Sólidos, Lei Federal da Mobilidade Urbana] e institucional [Ministério das Cidades, Conferência Nacional das Cidades e centenas de conselhos participativos em todos os níveis de governo]. Enquanto os investimentos estavam escassos, entre os anos 1980 e 1990, vivemos um período muito criativo nos governos locais, com experiências que ficaram famosas no mundo todo, como orçamento participativo, programa CEU [Centro Educacional Unificado], urbanização de favelas etc. Estamos falando de reformas que podem conviver com relações capitalistas numa sociedade mais democrática. Quando o governo federal retomou os investimentos – chamado por alguns de neodesenvolvimentismo –, as cidades foram tomadas de assalto por alguns capitais: empreiteiras de construção pesada (infraestrutura, em especial rodoviária), incorporadores imobiliários e indústria automobilística.

A taxa de desemprego nunca foi tão baixa desde que é registrada. Mas as cidades explodiram, seja pelos incríveis congestionamentos viários – o que atingiu também a classe média -, seja pelo aumento fantástico dos preços dos imóveis e aluguéis reproduzindo, em novas bases, a segregação e a exclusão urbanas. Com as obras da Copa do Mundo e a especulação imobiliária, esse impacto nas cidades se aprofundou. Os subsídios aos automóveis duplicou o número de carros em poucos anos. Os subsídios à moradia, em contexto de mercado fundiário e imobiliário sem controle, impactaram o preço da terra e dos imóveis.

A proposta de reforma urbana tinha como núcleo central a reforma fundiária. Mas a função social da propriedade ficou apenas no papel. Ainda que esse papel seja a Constituição Federal e a Lei Federal Estatuto da Cidade. É preciso ainda dois aspectos políticos que contribuíram com essa derrota da utopia da reforma urbana, além, evidentemente, da conjuntura capitalista internacional: primeiro, as forças que propuseram a reforma urbana foram engolidas pela institucionalidade, assim como alguns partidos de esquerda, e perderam a capacidade transformadora; segundo, o financiamento das campanhas eleitorais, especialmente na escala local, está imbricado com as forças que têm nas cidades seu grande negócio.

 

RR: Isto posto, o que é possível fazer para vencer essa barbárie que se instalou nas cidades brasileiras?

 

EM: Na escala da política urbana, e isso é competência do poder municipal, aplicar as leis, os programas e planos diretores que ficaram nas gavetas e nos discursos. O transporte coletivo, por exemplo, é prioridade legal em todos os planos diretores, mas na prática é o carro e o rodoviarismo que comandam a mobilidade e os investimentos em consonância com o mercado imobiliário. Isso quer dizer que túneis, pontes, viadutos, novas avenidas, além de se prestarem para a visibilidade que o marketing eleitoral explora e render dividendos para campanha eleitoral, agregam valor às propriedades localizadas nos seus arredores. A proposta de reforma urbana, com ênfase na função social da propriedade e no IPTU progressivo, não foi implementada com a finalidade de democratizar as cidades.

Na escala metropolitana, precisamos avançar numa gestão compartilhada. Evitar que cada município aponte um rumo diverso, ou sem levar em consideração o outro, numa região em que a urbanização é contínua e desconhece limites institucionais. Nas metrópoles não há mais solução municipal para políticas de habitação, transporte, saneamento ambiental, drenagem, coleta e disposição final do lixo, coleta e tratamento de esgoto, captação e distribuição da água, além de saúde e educação. A Constituição de 1988 remeteu à esfera estadual a competência da definição de regiões metropolitanas e sua gestão. Mas os governadores e os legislativos estaduais não querem afrontar os municípios e suas políticas paroquiais. Esses desafios ainda se mantêm atualizados.

 

RR: Assim como outras questões sociais, econômicas e políticas estruturais, como uma reforma urbana pode contribuir com o desenvolvimento, em seu sentido mais amplo, da sociedade brasileira?

 

EM: A luta salarial não dá conta de melhores condições de vida nas cidades. Os governos Lula e Dilma lograram melhorar a taxa de salários. No entanto, essa melhora que permite comer melhor, comprar motos, carros, eletrodomésticos, não permite a compra de melhores transportes coletivos. Porque o automóvel não resolve o problema. Também não impede o avanço de epidemias como a dengue. Há que se fazer reformas e uma delas passa pela terra urbana ou terra urbanizada. Além do que foi apontado, poderíamos calcular o custo social dessa cidade espoliada que beneficia apenas alguns. Acho incrível que os economistas não reconheçam o impacto que a especulação imobiliária tem na inflação. Eu vivo isso cotidianamente no meu bairro com o preço dos aluguéis, do estacionamento, do cafezinho etc.

Temos alguns estudos que revelam o custo das aproximadamente 40 mil mortes anuais e perto de 400 mil feridos no trânsito ao sistema previdenciário. Temos estudos que mostram o impacto e o custo da poluição do ar na saúde das pessoas. Temos ainda estudos que mostram o custo das horas paradas no trânsito, mas como disse alguém “tudo isso contribui para aumentar o PIB”. Até mesmo os doentes nos hospitais. A professora Tania Bacelar [economista e socióloga] lembra sempre dessa invisibilidade do espaço e do território em nossos debates nacionais. No entanto, sei que a resposta a essa pergunta não é simples.

 

RR: Em artigo publicado na revista Política Social e Desenvolvimento você menciona que “exceção é mais regra do que a exceção e a regra é mais exceção do que regra”, no cotidiano das cidades. O que isso significa?

 

EM: Essa frase do teatrólogo Bertold Brecht expressa bem a dialética presente nas cidades brasileiras, onde a lei se aplica de acordo com as circunstâncias. Grande parte da população urbana, exatamente a de mais baixas rendas, mora ilegalmente, desconhecendo legislação de parcelamento do solo, ambiental, de zoneamento, de código de obras e edificação etc. Essa ilegalidade parece fornecer um chão para todas as outras: não há polícia, cortes ou tribunais para a solução de conflitos. Os direitos básicos previstos em lei não são observados. A proporção dessa população varia conforme a cidade e a região do país. No Norte e parte do Nordeste mais de 50% da população urbana moram na cidade ilegal, onde “a exceção é mais regra que exceção”. Isso é, sem dúvida, chão fértil para a violência.

Interessante lembrar como contraponto: a legislação e os planos diretores são detalhistas e os procedimentos de controle do uso e ocupação do solo são profusamente burocráticos.

 

RR: A sociedade brasileira, que se sente cada vez menos representada por seus governantes, pode delegar as discussões e a realização de uma tarefa dessa magnitude exclusivamente aos políticos?

 

EM: Não há a menor dúvida de que precisamos de uma reforma política no país. Os interesses do agronegócio e da especulação imobiliária são dominantes no Congresso Nacional e isso tem a ver com financiamento de campanha.

Para a reforma urbana precisamos também combater o analfabetismo urbanístico ou geográfico, que atinge também muitos economistas, advogados etc. A terra é um componente que se renovou na globalização financeirizada. Cada pedaço de cidade é único. A aplicação da função social da cidade, da função social da propriedade e do IPTU progressivo são fundamentais. A especulação imobiliária empobrece as cidades. Mas, muitos a veem como progresso e desenvolvimento. A universidade teria uma tarefa importante aí.

 

RR: Na década de 1960, os partidos de esquerda defendiam a necessidade de uma reforma urbana no Brasil. Hoje, quem são os defensores?

 

EM: Penso que num determinado momento, entre 2007 e 2013, a reforma urbana ficou totalmente esquecida. Parecia a alguns que um montão de obras iria resolver os problemas do desenvolvimento do país e das cidades. Acontece que as obras não obedeceram a alguns pré-requisitos: a precedência de uma reforma fundiária/imobiliária e a obediência a um planejamento baseado nas necessidades sociais. Eu costumo dizer que são obras sem plano e plano sem obras. Estamos em dívida com o transporte coletivo há décadas. Não adianta querer fazer o fetiche [urbanismo do espetáculo] do futuro trem bala, monotrilho, passando por cima de décadas de demandas atrasadas. Os lobbies atuam nas câmaras municipais, assembleias legislativas, antecâmaras de governos e partidos sem descanso. Mas acho que uma nova geração vem aí. Jovens do MPL [Movimento Passe Livre], Intervozes, Levante Popular da Juventude, MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra] estão começando a construir uma unidade popular que tem muito a ver com cidade e democracia. Constatei a busca dessa unidade em algumas cidades, já que sou muito demandada para falar a eles. Claro que o momento é de muita tensão, já que o jogo dos conservadores é pesado, o que inclui, evidentemente, a grande mídia.

Como a questão urbana é muito complexa, vejo como muito importante o papel dos profissionais de arquitetura, urbanismo, engenharia, assistência social, agrônomos, paisagistas, médicos, sanitaristas, economistas, entre outros. Mas é uma minoria que tem o pé na realidade e tem propostas concretas para a solução de problemas. Abundam profissionais que vendem ideologia sob a forma de resultados práticos. No Judiciário, a legislação urbana é majoritariamente desconhecida. Mas existe no Brasil uma expertise considerável ligada a problemas urbanos.

 

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