A PANDEMIA COVID-19 impôs a necessidade de pensar a relação entre desenvolvimento, economia e saúde. A retomada de uma abordagem de economia política da saúde, para além da restrita visão da economia da saúde tradicional, de alocação de recursos escassos, mais do que nunca precisa ser efetuada. Este número especial dos Cadernos do Desenvolvimento marca, mais do que uma contribuição pontual, ainda que necessária, a retomada de um vigoroso programa de pesquisa para avançar na relação saúde e desenvolvimento a partir do conceito do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS), numa concepção que articula o espaço econômico, político e social da saúde com a base produtiva e de inovação e os direitos sociais. Em última instância, insere-se no esforço de conceber e atuar para a conformação de um projeto nacional de desenvolvimento que seja ao mesmo tempo dinâmico, sustentável, equânime e justo, marcando o vínculo moral, infelizmente perdido, entre a economia, a produção, a inovação e a vida.

A tragédia da pandemia Covid-19 expôs fragilidades estruturais do País que ameaçam o Sistema Único de Saúde (SUS). O programa de pesquisa do CEIS, que vem sendo desenvolvido há 20 anos na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), alerta, desde sua concepção, para questões graves que se converteram em entraves para a garantia do acesso à saúde nesta crise. A ênfase do CEIS na interdependência endógena entre as dimensões econômica, produtiva, tecnológica e social do acesso universal à saúde, e sua relação intrínseca com o desenvolvimento nacional, oferecem uma base a partir da qual foi possível antecipar múltiplas vulnerabilidades que se agravariam, como a dependência comercial crônica de produtos estratégicos para a saúde.

Para atualizar a agenda de pesquisa do CEIS, a ação prospectiva da Fundação Oswaldo Cruz levou à construção de uma rede estruturante de pesquisa com grande potencial científico para pensar saúde, CEIS e desenvolvimento. Em colaboração estratégica com instituições de excelência na área de economia política, com destaque para a Universidade Federal do Rio de Janeiro, a Universidade Estadual de Campinas e a Universidade Federal Fluminense, o projeto “Desafios para o Sistema Único de Saúde (SUS) no contexto nacional e global de transformações sociais, econômicas e tecnológicas – CEIS 4.0” envolve mais de 35 pesquisadores de alta qualificação em uma investigação articulada e comprometida com o acesso universal à saúde, com o SUS e com o desenvolvimento.

“Desenvolvimento, saúde e mudança estrutural: O Complexo Econômico-Industrial da Saúde 4.0 no contexto da Covid-19”, título para a presente edição da revista Cadernos do Desenvolvimento, traz os primeiros resultados do projeto CEIS 4.0, nos marcos das comemorações dos 100 anos de Celso Furtado e 120 anos da Fiocruz, e sob o incontornável impacto da pandemia. Furtado apontava que o conhecimento consistente da realidade social é condição essencial para a superação do impasse histórico que se manifesta como o subdesenvolvimento. A Fiocruz é uma manifestação desse espírito e historicamente sempre se debruçou sobre as condições reais de saúde no Brasil para superar crises e construir novos caminhos.

Reforçando as bases teórico-políticas do programa de pesquisa do CEIS na saúde coletiva e no pensamento estruturalista latino-americano, este número apresenta um conjunto de intervenções qualificadas e oportunas para responder à crise da pandemia, articuladas em torno de questões do desenvolvimento econômico e social do País.

A revista começa com um artigo de minha autoria que estabelece as bases conceituais do projeto norteador desta edição e traz a configuração atualizada do CEIS 4.0, acentuando a interdependência endógena, analítica e política, entre as dimensões econômicas e sociais do desenvolvimento. Realçadas pela crise, as mudanças demográficas e epidemiológicas, a globalização e a financeirização crescentes, a 4ª revolução tecnológica, o aprofundamento das assimetrias econômicas e tecnológicas, as mudanças climáticas e no mundo do trabalho são vigorosos processos em curso que têm potencial de transformar radicalmente a saúde, tanto em sua base social como produtiva. Essas mudanças vêm gerando novos problemas de pesquisa e demandam novas respostas e formulações teóricas. Sob o atual contexto de desafios intensificados com a pandemia Covid-19, o artigo busca mostrar a importância de aprofundar o programa de pesquisa do CEIS e a necessidade de se superar falsas e lineares dicotomias para avançar na dimensão teórico-conceitual e repensar estratégias nacionais e globais de desenvolvimento.

As transformações recentes na dinâmica global de produção e inovação e seus impactos sobre as políticas públicas, com o aprofundamento do processo de financeirização, são discutidas no artigo de Cassiolato et al. A pandemia Covid-19 é tratada a partir dos efeitos sobre a economia e a sociedade, o papel das novas tecnologias digitais nas transformações globais, nas políticas industriais e de inovação e, em especial, no sistema produtivo e inovativo de saúde. O artigo de Lastres et al., a partir da análise do conjunto de revelações associados à Covid-19, discute o posicionamento da saúde como eixo de um novo projeto de desenvolvimento. Além das questões ambientais e das desigualdades, são examinados processos e impasses relacionados ao papel do Estado e dos serviços públicos, à nova dinâmica produtiva e tecnológica e à visão sistêmica e contextualizada da produção e do desenvolvimento, colocando o território como elemento imprescindível das análises e proposições de políticas.

A importante discussão sobre a dinâmica global do sistema produtivo e inovação do CEIS e de que forma suas fragilidades estruturais foram evidenciadas pela eclosão da pandemia Covid-19 é realizada pelo terceiro artigo, de Sabbatini et al. Os autores discutem as medidas que estimulam a internalização, o desenvolvimento e a utilização de tecnologias contidas no conceito de revolução 4.0, não só como parte de um projeto de desenvolvimento socioeconômico, mas como forma de enfrentamento à emergência sanitária. Hiratuka e Sarti et al., por sua vez, mostram como as mudanças nas estratégias de acumulação das empresas líderes globais promovem transformações estruturais e como essas transformações expõem a vulnerabilidade produtiva e tecnológica estrutural do CEIS no Brasil. Os autores abordam as mudanças nas estratégias das empresas líderes globais do CEIS de modo a avaliar a nova dinâmica de acumulação do setor, apontando suas implicações para a superação dos desafios econômicos e sociais na área de saúde no Brasil.

Vargas et al. adentram os impactos decorrentes da pandemia Covid-19 na organização e fomento das atividades de ciência, tecnologia e inovação em saúde no mundo e no Brasil. Avaliam tanto os mecanismos de coordenação e apoio a essas atividades que passaram a ser adotados no enfrentamento da pandemia quanto a evolução recente da produção científica sobre a Covid-19. Maldonado e Cruz, por sua vez, demostram a intensificação recente do uso da telemedicina e do debate em torno dessa tecnologia em níveis globais e nacionais. Mostram os principais impactos da pandemia na telemedicina no Brasil, como essa discussão precisa se inserir em uma estratégia nacional de desenvolvimento e em que medida prevalecerão os interesses da saúde pública e do acesso universal humanizado.

Abrindo novo enfoque de pesquisa sobre o mercado de trabalho no CEIS, Gimenez e Cajueiro chamam atenção para as fragilidades ocupacionais explicitadas na pandemia e sua relação com as contradições presentes no mundo do trabalho da saúde. De um lado, o SUS, que demarca uma avançada estrutura de prestação de serviços universais, desde atenção básica até os procedimentos mais complexos, e, de outro lado, as limitações financeiras, tecnológicas e produtivas do CEIS, que bloqueiam a expansão das ocupações de qualidade. Santos e Manzano et al. analisam a distribuição dos profissionais de saúde no Brasil, destacando as disparidades na sua distribuição regional. Mostram como as disparidades são em parte atenuadas pela amplitude e descentralização do SUS, compensando a escassez relativa de serviços privados de saúde, principalmente nas regiões de menor renda per capita. Os estudos acentuam que a geração de ocupações qualificadas em saúde depende de uma base produtiva forte e desenvolvida, compatível com as exigências do acesso universal e do SUS do século XXI.

Dweck et al. demonstram como as fragilidades estruturais do CEIS, associadas às finanças públicas brasileiras, se manifestaram durante a pandemia. Mostram o impacto das regras fiscais sobre o financiamento do SUS neste contexto e o desequilíbrio na arquitetura do federalismo fiscal brasileiro entre a oferta de serviços pelos entes subnacionais.

Abordam também sobre a necessidade de construção de uma agenda que responda aos desafios estruturantes do SUS e às vulnerabilidades do CEIS. Rossi e David mostram como a pandemia atingiu o Brasil em meio à aplicação de uma agenda de reformas centrada na austeridade e na redução do papel do Estado na economia, evidenciando a necessidade de rever os mecanismos de financiamento da saúde para os próximos anos e a urgência em discutir o futuro do financiamento público à saúde no Brasil.

Por fim, o artigo de autoria da equipe de coordenação executiva deste projeto fecha a edição, mostrando o contexto da produção e inovação em saúde no Brasil e sua capacidade de resposta à pandemia Covid-19. Foram analisados os aspectos críticos da geopolítica da inovação em saúde, de que forma essas dinâmicas interferem na soberania nacional em saúde e quais os aprendizados principais a serem retidos desse momento de crise. O artigo desdobra o conjunto das contribuições analíticas da dinâmica do CEIS 4.0 e evidencia que a saúde e o bem-estar são alavancas estruturais para a saída da crise.

Esta edição marca o ponto de partida de um renovado programa de pesquisa, com o objetivo de colocar em evidência a necessidade de avançarmos no debate sobre as questões estruturais que impedem a superação desta crise sanitária e humanitária e seus desdobramentos sociais, econômicos e ambientais. Cabe, àqueles que se propõem a estudar e elaborar políticas públicas deste campo, a responsabilidade de extrair deste contexto difícil os aprendizados para a superação desta crise e das que certamente estão por vir.

Que o esforço dessa rede de pesquisadores contribua para o fortalecimento de um vigoroso programa de pesquisa na economia política da saúde, em uma abordagem ao mesmo tempo sistêmica e estrutural, e que, crescentemente, incorpore outros campos de saberes das ciências sociais, exatas e da natureza. Avançar na elaboração de investigações que explorem a interdependência endógena entre as dimensões econômicas, sociais e ambientais do desenvolvimento impõe-se como uma necessidade teórica e política. Esperamos que o aprofundamento da compreensão das transformações e mazelas estruturais que acompanham historicamente a realidade brasileira, reveladas de modo arrebatador em um contexto de perda de vidas decorrentes da pandemia Covid-19, ajude na proposição de uma realidade e de um projeto, possível e necessário, para um País comprometido com a vida, com o desenvolvimento, com a ciência, a tecnologia e a inovação, com os valores humanos, ambientais e com a equidade social.

Boa leitura.

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Carlos A. Grabois Gadelha
Coordenador do Projeto CEIS 4.0
Editor convidado

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