O Brasil atravessa simultaneamente dois fenômenos que exigem atenção, planejamento e capacidade de compreensão de gestores, profissionais de saúde e dos pacientes. A chamada transição demográfica nos conduz a uma sociedade mais envelhecida. Já a transição epidemiológica nos leva a um mundo onde as doenças crônicas exigem um modelo e uma intensidade do cuidado que as doenças agudas dos séculos XIX e XX não exigiam. Esses fenômenos acontecem em sociedades em desenvolvimento. Os países com alto nível de qualidade de vida também passaram por este processo de mudanças, mas com uma diferença fundamental: o tempo. O Brasil está no meio destes processos e terá duas ou três décadas para fazer o que países da Europa e Ásia tiveram quase 100 anos.

Outro ponto é que essas transições, necessariamente, não acontecem ao mesmo tempo, como está se dando no Brasil. Mas, afinal, já estamos lidando com esses fenômenos, com a importância que têm para a reconfiguração da sociedade? O que cabe aos pacientes? E aos profissionais de saúde e gestores? Ao Estado? Quais os deveres e responsabilidades? O velho modelo de atenção às doenças agudas ainda nos servirá para assistir nossos doentes do século XXI? Para tratar desses temas de maneira mais precisa falamos com Nelson Ibañez, professor da Faculdade de Ciência Médicas da Santa Casa de São Paulo e pesquisador do Centro de Estudos Augusto Leopoldo Ayrosa Galvão (CEALAG). 

Região e Redes: Como a transição da doença aguda para a crônica tem acontecido ao longo do tempo?

Nelson Ibañez – No Brasil, durante o século XX, diminuiu muito a incidência das doenças infecciosas, mas não totalmente, porque há mutações como variações do H1N1, zika, febre amarela que estão aí para nos lembrar e ainda o recrudescimento, por exemplo, da tuberculose. Os países desenvolvidos mudaram a agenda para doenças crônicas degenerativas a partir dos anos 1950 e os países periféricos a partir dos anos 1970 e 1980.

Já o fenômeno do envelhecimento é “novo” e vem acompanhado dessa nova agenda, que já responde pelas principais causas de mortalidade atual, como cerebrovascular e neoplasias. No Brasil, tem um outro ponto importante que temos que considerar que é a violência, urbana e de trânsito, que mata cerca de 100 mil pessoas por ano, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

RR – A visão que se tem sobre o paciente muda do modelo de cuidado voltado para doenças agudas para as crônicas?

NI – A percepção do doente precisa fazer parte do universo do sistema de saúde. Às vezes nós excluímos o indivíduo sem reconhecer essa pessoa que está submetida a determinantes sociais e que sofre esse processo de diferentes maneiras. Apesar de nossa Constituição estabelecer o SUS como um sistema universal e colocar atrás desse sistema a razão democrática e cidadã eu ainda permaneço vendo esse indivíduo como objeto do meu sistema e não como sujeito. Ao agir dessa maneira as minhas ações são, de certa forma, “autoritárias”.

RR – Esse olhar interfere ou define o modelo de assistência e gestão das ações e serviços de saúde? Quem define as prioridades? Com quais objetivos?

NI – É difícil, especialmente no Brasil, porque vivenciamos uma tripla carga de doenças: as dos séculos XIX, XX e XXI. Não dá para se dedicar com exclusividade a uma agenda de crônico-degenerativo porque não podemos descuidar do controle das doenças transmissíveis, dos problemas crônicos agudizados e das causas externas. Por isso se continua com o modelo agudo mesmo para o tratamento das doenças do século XXI.

Isso tudo reforça o uso desse modelo para doenças agudas porque ao paciente é comunicado e imposto que saiba se cuidar dentro desse padrão, que sempre foi tomar remédio, curar ou morrer. Não se exigia um cuidado contínuo, um olhar mais amplo sobre o próprio corpo e os determinantes de saúde que o impactam. Aí acontece que a pessoa tem, por exemplo, diabetes. Mas não faz dieta, não toma remédio, não faz acompanhamento médico. Resultado: a doença crônica se agudiza em função de mudanças complexas que precisam ser realizadas no modelo de atenção para promover saúde para essas doenças do século XXI, mas não são feitos. Eu preciso que esse indivíduo passe de objeto a sujeito do sistema.

Precisamos de um modelo que deixe claro que se ele não conseguir mudar hábitos de vida, aceitar a medicalização e a ciência moderna cotidianamente, o problema dele pode complicar. Tem ainda uma questão importante: se ele mora num grande centro, leva até duas horas para ir de casa para o trabalho e temos de introduzir o estresse. Pronto! Complicou tudo.

Ele tem pouco tempo para fazer outras coisas, como se preocupar com a alimentação, fazer exercício; tem que comer correndo. A obesidade começa a ser outro problema. É complexo intervir.

Que ações eu posso fazer para esse paciente se conscientizar, na medida do possível, para não agudizar? É preciso a mudança de paradigma tanto na concepção médica quanto nos sistemas ao abordar esses problemas.

RR: No Brasil temos que lidar com três agendas simultaneamente: a do passado, a do presente e a do futuro…

NI – Sim! Hoje vivemos com as doenças transmissíveis, as crônico-degenerativas e a violência (urbana e no trânsito). Só que esse futuro é agora, é já. Então eu tenho que fazer mudanças que não são triviais, de apenas alguns procedimentos. É mudança cultural, profunda; onde a mudança que é ver o paciente como sujeito, como um dos pilares, o que não é simples.

RR – Quem precisa ver o paciente como sujeito: o médico, o sistema ou o próprio paciente?

NI – Os três. O paciente se vê em tese como sujeito. Mas quando ele vai entrar no sistema não o deixam se manifestar. Ele não consegue ser ouvido. Um exemplo é: quando eu sinto uma dor, um problema, de acordo com meu padrão de cultura e de classes, eu penso alguma coisa. Imagino um diagnóstico. Aí quando vou ao médico, estou pensando nisso e o médico fala que é outra coisa. Isso pode, de certa forma, me confortar ou pode não confortar e eu continuo com a minha cultura. Quando o médico orienta a fazer determinadas coisas, eu tenho que acreditar naquilo, caso contrário não faço.

RR – Como se faz para evoluir essa relação entre o paciente e o sistema de saúde? Como levar o indivíduo de objeto a sujeito?

 NI – Essa pergunta envolve várias dimensões que de certa forma foram mencionadas na entrevista mas vale a pena salientar os grandes vetores.

O primeiro e central é a manutenção e ampliação do nosso sistema de seguridade social, ameaçado e diminuído permanentemente pelas políticas de ajuste fiscal e austeridade, que como sabemos por estudos recentes provocam efeitos danosos nas políticas sociais e especial no agravamento das situações epidemiológicas e de suficiência de recurso no caso setorial da saúde.

A mudança do paradigma atual requer uma série de ações (planejamento voltado para o sujeito, abordagem sistêmica, regulação pela demanda, novo padrão de educação entre outros) mas queria salientar um tópico que fica isolado e tende a se restringir aos domínios exclusivos da chamada academia: a investigação. É importante desenvolver trabalhos que integrem olhar e conhecimento da universidade, da gestão, dos profissionais e da sociedade. A pesquisa Regiões e Redes e o projeto Gestão Regional de São Paulo têm feito esse exercício, interagindo com os mais diferentes atores envolvidos no processo de construção desse novo paradigma da realidade multifacetada do nosso país. Tudo isso evidencia de maneira sistemática nossas trajetórias históricas e institucionais, permitindo criar novas bases para essa mudança.

RR – Como os países desenvolvidos fizeram essa transição, já que tiveram mais tempo para se adaptar?

NI – A Espanha tem um exemplo interessante. Numa região de saúde foi criada uma escola de pacientes. Por quê? Eu tenho lá autocuidado assistido, e um aprofundamento do ponto de vista da vigilância a pacientes. O que eu tenho que fazer? Uma classificação de risco. Entre 60% e 70% dos pacientes iniciam num quadro não tão grave.

RR – O Brasil tem um sistema público de saúde que tenta ser universal e há dezenas de “caixas” para desembrulhar, e uma delas é que “o usuário não sabe usar o sistema”, uma queixa recorrente de gestores e profissionais. Na sua visão, essa educação do usuário é responsabilidade de quem?

NI – Eu sempre brinco que se você tirar o paciente do sistema, melhora. Se tirar o médico melhora ainda mais. Mas, respondendo, se eu estou com dor às 19h30, vou à Unidade Básica de Saúde (UBS)? Não, vou ao Pronto Socorro (PS). E lá vão falar para mim que eu devia estar na UBS. Mas essa dor não está classificada dentro do sistema de urgência e emergência. Então, autoritariamente, me falam: para você entrar aqui tem de passar por ali. Só que essa passagem está obstruída. Se eu tivesse médico na UBS, talvez a situação fosse outra. Ora, quem deveria educar o paciente? O próprio sistema, colocando suficiência naquilo que se propõe a fazer. O que é colocar suficiência? A Atenção Básica se propõe a fazer isso, isso e isso. Ela faz? Se ela não faz, eu não posso falar que é o paciente que não sabe usar o sistema.

Uma outra questão que complica mais essa situação é discutida pelo cardiologista italiano Marco Bobbio, no livro O Doente Imaginado, que são análises dos pacientes que ele recebia no consultório. Ele dá o nome de “doentes imaginados” porque é o doente imaginado pelo médico e pela indústria farmacêutica.

Coloco sobre o paciente, além das crenças pessoais dele, a tecnologia, a magia da ciência como solução para tudo. Ele espera que ao ir ao médico resolva o problema. Do ponto de vista coletivo, cria-se uma violência, um uso desses avanços positivos da ciência de maneira exagerada, colocando em risco o próprio paciente.

De um lado, o médico começa a exagerar e nem ouve o paciente, não o vê como sujeito e já pede exames. O paciente, por sua vez, cria uma expectativa de que o médico vai pedir muitos exames e que esses exames vão dizer o que ele tem. E, às vezes, o que ele tem está na essência do que ele diz na conversa.

Isso sem falar das doenças mentais. Na nossa sociedade, o nível de ansiedade medicalizada é excessivo sem falar no processo de exclusão social e marginalização. Aumentam o número de usuários de drogas e os casos de alcoolismo como escape dessa situação. De repente, eu estou cercado por esse grupo de patologias que podem ser classificadas como crônicas, mas a gente separa como doenças mentais. Ou seja, eu tenho que agir, mas tem um exagero na intervenção. É razoável viciar uma mulher com tensão pré-menstrual em ansiolíticos quando eu posso trabalhar isso num outro patamar?

RR – A tripla carga de doenças com que o Brasil lida fez evoluir de um olhar interno para a área da saúde a uma visão mais abrangente sobre o paciente? A intersetorialidade, ou multisetorialidade, já é vista com a devida importância que tem para o SUS?

NI – A intersetorialidade entra como fator determinante da qualidade da saúde. Morar mal, não ter emprego impacta a saúde. Quando você estabelece uma política de austeridade você arrocha todas essas questões sociais que influem sobre a saúde. Em um primeiro momento, há o aumento de suicídio, depois vai piorando porque o Estado sai do cenário e a culpa por tudo é do indivíduo. A coisa da assistência social pode parecer bobagem, mas à medida que você estabelece uma renda familiar mínima, você dá uma condição mínima para o cidadão. A questão da aposentadoria também é central. Cada vez mais existem episódios em que a pessoa adoece e não tem mais condições de voltar ao trabalho nas mesmas condições que estava. Quem vai sustentar? Essa intersetorialidade sempre existiu, mas ela, agora, aparece com força não só na causa ação, mas como remédio.

RR – Essa nova agenda inviabiliza o olhar setorial isolado sobre os problemas?

NI – A intersetorialidade é fundamental, mas as políticas públicas sociais têm de ter abrangência. Quando eu foco a saúde, ela não sai das páginas de jornal. Vai ter sempre alguém que vai morrer porque eu não consigo dar assistência, porque eu também não tenho suficiência. Então, além do setorial tentar garantir uma outra visão, esse processo não é tão rápido assim, porque o sistema não é mágico.

A regionalização e a conformação das redes avançaram, mas é um processo lento. Nós temos que aprofundar e criar experiências em que eu coloco o paciente como sujeito. Tento criar mecanismos de acolhimento, uma regulação da demanda em vez da oferta, e melhorar a suficiência do sistema. Ao mesmo tempo tenho que ter políticas sociais e econômicas que me deem apoio. Se eu não tiver uma política social de desenvolvimento social para aquela região é a mesma coisa que combater endemias rurais com inseticidas. Mata o mosquito, mas as pessoas também. Tenho que montar um sistema de intervenção que não provoque tanta sequela, que não deixe o crônico agudizar, porque depois eu tenho um outro momento – não tenho a fisioterapia, não tenho quem cuide. O sistema tem de enfrentar sua complexidade, mas não é arrochando, é dando suficiência. Se eu tiro a suficiência do sistema e a gestão, tudo tende a ficar mais fragmentado e mais emergencial (apagar incêndios). Isso cria uma competência limitada para resolver essa nova agenda.

Aqui a aula sobre o tema desta entrevista na Série “O valor do SUS”, realizado em 2021.

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