O processo de regionalização do sistema de saúde espanhol é um dos casos mais bem sucedidos no mundo. O modelo emergiu após o período ditatorial, nos anos 1970, no bojo de uma ampla reforma da legislação que criou uma forte rede de proteção social aos cidadãos espanhóis. Para falar sobre a implantação do modelo e sobre as dificuldades enfrentadas pelo país ibérico, Região e Redes ouviu José Luis Ruiz, diretor médico assistencial do departamentos de Ribera, em Valência. Ele esteve em São Paulo, entre 26 e 28 de agosto, para participar do IX Congresso Internacional da Rede Brasileira de Cooperação em emergências (RBCE).
Região e Redes – Quanto tempo foi necessário para ser implantado o sistema espanhol e quais foram os principais desafios?
José Luis Ruis – Quando a Espanha saiu da ditadura se decidiu por fazer uma regionalização das diferentes culturas e realidades que há no país e dar autonomia a esses departamentos. O que se buscava era descentralizar e permitir uma autonomia na gestão e na política. Sem perder a perspectiva de que é responsabilidade do governo central zelar pelo desenvolvimento igualitário entre as regiões e sem privilegiar uma região em relação a outras. Essa foi a evolução histórica que nos inspirou. Nesse período não tivemos grandes dificuldades por que foi uma escolha de toda a sociedade deixar um passado de atraso. Algumas dificuldades vieram depois e a principal foi cuidar para que as diferenças culturais não legitimassem diferenciações no direito dos pacientes e gerassem desigualdades.
RR – Quais as principais mudanças percebidas na contratação de pessoal, oferta de serviços e ações de saúde, distribuição de recursos e tecnologia no território espanhol após o início do processo de regionalização?
JLR – É preciso explicar que a atenção à saúde nem sempre necessita de muita tecnologia, variando de acordo com as demandas locais de cada região. O que tentamos fazer na Espanha é redistribuir nos departamentos autônomos diferentes recursos para solucionar as demandas locais das pessoas. Queremos compreender as necessidades por tecnologia e recursos e oferecê-las ao paciente. Por exemplo, no meu departamento, se o paciente chega com enfermidade menos grave e não requer hospitalização oferecemos assistência em ambientes de menor complexidade, com menos recursos, e deixamos o tempo e os recursos do hospital para as pessoas que realmente necessitam desse nível de assistência e esse grau de tecnologia.
RR – Em palestra no IX Congresso Internacional da RCBE, em agosto, você afirmou que: “o direito a saúde deve ser do cidadão e não do território”. Na prática, como isso é garantido?
JLR – Basicamente, a essência do planejamento feito por todas as comunidades autônomas da Espanha considera que o centro do sistema é o cidadão. Tudo é pensado e direcionado para facilitar e melhorar a vida do cidadão.
RR – Como a autoridade regional organiza os diferentes níveis de complexidade e a relação entre atenção primária, média e alta complexidade e urgências?
JLR – Na comunidade onde vivo e trabalho, Valência, estamos divididos em diferentes departamentos e, em cada um deles, um gestor assume tanto a gestão da atenção primária quanto a da atenção especializada. Dessa forma o que se espera é que haja uma continuidade na atenção que oferecemos aos cidadãos. Para isso a gerência desse modelo regional é única, o que facilita a comunicação e a alocação de recursos. Isso tem nos dado bons resultados na atenção a população e tem facilitado nosso trabalho para que essa atenção seja cada vez melhor.
RR – Como é o processo de formação de gestores na Espanha?
JLR – Na Espanha não temos uma formação específica para a gestão e nos formamos de acordo com nossa experiência e conhecimento das realidades. A formação como médico está regulada em nível nacional e o meu diploma como médico e especialista vale em todo o território nacional. Não temos o reconhecimento do profissional médico de urgência, o que considero um erro porque prejudica a atenção e a equidade da atenção oferecida aos pacientes. O que temos na Espanha, então, são médicos gerais, que trabalham em urgências e vão adequando a sua formação de acordo com suas realidades e necessidades, tanto assistencial como na gestão.
RR – A pensar pela sua experiência, quais as dificuldades são mais importantes para um país como o Brasil que não tem um sistema de saúde regionalizado mas que necessita avançar nessa direção?
JLR – São necessárias duas coisas para que a atenção sanitária funcione bem. Uma é saber decidir sobre organização e planejamento e deixar claro que o objetivo fundamental é a saúde do paciente.
O segundo pilar é a formação dos profissionais. É necessária uma formação homogênea e similar, a fim de que não se melhore uma coisa e se piore outra. Não adianta termos programas regionais de atenção se o médico que está atendendo não estiver formado adequadamente. Para o cidadão, não adianta ter os recursos, a tecnologia, mas o médico não saber como tratar corretamente seus problemas. E existe uma última coisa que é ajustar os recursos financeiros às necessidades da região. Afinal, os recursos não são infinitos.
RR – Como se dá a contratação de médicos nas regiões autônomas?
JLR – Cada governo autônomo tem competência para fazer suas contratações, que podem ser por meio de concursos convocados pelos governos, ou de contratação temporária, quando necessário, sempre de forma orientada e regulada por regras que visam facilitar e melhorar a atenção de qualidade para os cidadãos.
RR – Qual o tamanho do setor privado na Espanha e como se dá a sua participação no sistema de saúde?
JLR – Há diferentes formas de trabalhar o setor privado na Espanha. Existe a fatia do setor privado que constrói seus centros e se gerenciam independente do controle público. E existem também várias formas de colaboração do privado com o público. Na localidade onde trabalho, que é um departamento da comunidade valenciana, uma das formas é a concessão. A gestão e a atenção sanitária é prestada pelo setor privado como auxiliar do público e está sujeita a normas e regras definidas pelas regiões de acordo com suas necessidades. As empresas privadas não podem fazer o que querem. Elas têm que se ajustar a algumas condições, firmadas em contrato de atenção, que asseguram a equidade no sistema para todos os cidadãos, independente da região ou departamento onde estejam.
Essa foi a forma que conseguimos para oferecer atenção similar para todos, mas todos os riscos próprios do investimento no mercado são assumidos pela empresa.
Sobre o tamanho, na comunidade valenciana, temos cerca de 4 milhões de cidadãos atendidos por serviços públicos, e cerca de 920 mil atendidos nos 5 departamentos com modelos de concessão de colaboração público-privado.