Os economistas que ocuparam o Ministério do Planejamento desde a presidência de José Sarney até hoje, com Dilma Rousseff, sempre sabotaram o SUS. Mesmo nos períodos de bonança. Saiba como e por que na entrevista concedida pelo professor da Universidade Federal da Bahia Jairnilson Paim à Pesquisa Região e Redes. 

 

Região e Redes – O debate sobre regionalização visa, entre outras coisas, enfrentar as desigualdades regionais. Como essa luta contra desigualdade podem contribuir para a consolidação do direito à saúde no Brasil e, por consequência, do SUS?

 

Jairnilson Paim – A luta contra as desigualdades regionais vai além das políticas racionalizadoras de regionalização. As desigualdades, que em última análise, comprometem o direito à saúde dos cidadãos e a consolidação do SUS, tem a ver com o modelo de desenvolvimento, de produção econômica e com o papel do Estado brasileiro.

 

RR – Alguns professores-pesquisadores, como Gastão Wagner (Unicamp) e Ana Luiza Viana (USP), acreditam que o futuro do SUS passa pela regionalização da gestão e planejamento dos serviços e ações de saúde. O senhor concorda com essa tese? Por quê?

 

JP – Depende de que SUS estamos falando. Se for um SUS pobre para pobre e complementar à chamada “saúde suplementar”, que se reduz a uma ideia empobrecida de saúde pública, tal como insinua o tema escolhido para a 15ª CNS, a regionalização da gestão e o planejamento de saúde podem ser dispensáveis. Bastariam ações de vigilância em saúde e algumas campanhas sanitárias e programas especiais, atualmente com a grife de “políticas nacionais” paridas pela tecnoburocracia do Ministério da Saúde.

Entretanto, se for o SUS formal que se encontra respaldado na legislação e tensionado pelo SUS democrático configurado pela radicalização do processo da Reforma Sanitária Brasileira na perspectiva de uma atenção integral e de um sistema de saúde universal e de caráter público, o planejamento ascendente e participativo, bem como a regionalização e profissionalização da gestão, podem ser fundamentais.

 

RR – Outra premissa da regionalização e do próprio ideário da reforma sanitária é a participação social na tomada de decisões que incidem no dia a dia do SUS como fundamental para a ampliação e avanço rumo ao SUS integral, igualitário e equânime. Por que é importante a ampliação da participação social para o avanço futuro do SUS?

 

JP – O poder regional não é, necessariamente, mais democrático que o estadual ou o central. Ele pode ser tão despótico quanto outro qualquer. Vai depender das situações concretas, isto é, dos acúmulos históricos, da cultura cívica, da correlação de forças e da constituição de sujeitos políticos. Em várias oportunidades tenho assinalado que o SUS foi construído com intensa participação social que resultou, inclusive, da abertura de canais de participação dentro do Estado, como os conselhos e conferências. Esses canais, embora fundamentais, são insuficientes diante do déficit de representação e de representatividade apontados em vários estudos sobre os conselhos de saúde no Brasil. Penso que essa participação social tem que ultrapassar as conquistas já alcançadas nos conselhos e conferências, ou seja, ir além do instituído e do institucionalizado. Isto significa radicalizar a democracia, atuando sobre os diversos antagonismos produzidos pela sociedade e pelo Estado brasileiro para além das lutas de classes. Onde houver opressão e dominação, em qualquer espaço social, há estímulos para a participação, constituição e organização de sujeitos sociais e atores políticos para construir, no presente, o futuro do SUS.

 

RR – Muito do que se tem a fazer no SUS e em políticas públicas ligadas à saúde esbarra nas limitações financeiras e econômicas do Estado brasileiro. Apesar de compreensível a legitimidade de avançar na garantia de direitos se e somente se houver recursos financeiros é algo muito discutível. Qual a sua opinião sobre a vinculação da ampliação do SUS ao êxito de políticas econômicas que nem sempre são convergentes com a garantia de acesso a direitos?

 

JP – Os economistas (com certas exceções) que se instalaram nos Ministério da Fazenda, Planejamento, Orçamento e Gestão, de [José] Sarney a Dilma [Rousseff], sempre sabotaram o SUS, tanto nos períodos de tempestade quanto de bonança. Conforme o professor [Eduardo] Fagnani,  um economista de tipo especial  e raro comprometido com os direitos da cidadania, a cláusula pétrea desta turma que, na maioria das vezes torna reféns presidentes, governadores e prefeitos eleitos pelo voto do povo, é que recursos fiscais não são para os gastos sociais. Como funcionários do capital, eles assumem o compromisso com a saúde da economia e com os humores do mercado financeiro e usam, sem o menor pudor, os recursos fiscais para subsídios, empréstimos de pai para filho, desonerações, reforço ao caixa do BNDES e do Banco Central, entre outras façanhas consideradas absolutamente normais e naturalizadas.

Mesmo quando as políticas econômicas tiveram êxito no governo Lula, nem assim equacionou-se o subfinanciamento do SUS. A “fuga para frente” do desenvolvimentismo brasileiro empurrou com a barriga “a garantia de acesso a direitos” na saúde. Na época das vacas magras que se anuncia, tanto pior. Enquanto quase metade do orçamento da União se destinar, anualmente, aos bancos e rentistas não vejo como garantir recursos para políticas sociais universais.

 

RR – O SUS é uma iniciativa contra hegemônica desde sua concepção e, hoje, no cenário político e econômico nacional e mundial, se mantém na contramão do que pregam as vozes dos mercados. Certamente isso não é pouca coisa. Mas questiono se a sociedade brasileira, seus movimentos sociais, organizações da sociedade civil e demais representante do povo têm essa dimensão bem aclarada sobre a importância do SUS para a democracia brasileira?

 

JP – Quem controla os meios de produção também controla os meios de comunicação e a ideologia dominante na sociedade brasileira é a ideologia das classes e grupos dominantes. Muito tem sido feito por universidades, Cebes, Abrasco, Conass, Conasems, entre outros, para informar sobre o SUS. Há os sites dessas entidades, há o Canal Saúde e o PenseSus da Fiocruz,  há os livros e vídeo-aulas do “Projeto Formação em Cidadania para a Saúde: Temas Fundamentais da Reforma Sanitária” do Cebes que podem ser baixados gratuitamente. Ainda assim, o muito que falo é muito pouco diante do poder da grande mídia. Ou seja, não é por falta de acesso a informações que as pessoas não sabem sobre a importância do SUS. O problema, também, é que este SUS real, que as pessoas encontram na prática, como elas dizem, nem sempre é suficientemente digno e de qualidade para  que possam chamar de seu…

 

RR – As possíveis soluções para questões que afligem a saúde no Brasil estão ligadas a questões estruturais externas à área da saúde. Alguns continuam a ver a saúde como um caixa, isolada. Um olhar destituído das interconexões necessárias para se entender temas complexos e interdependentes. Você acha possível avançarmos mais com essa visão restrita?

 

JP – Quem vê saúde como caixa, isolada, não entende o que é saúde, nem a sua determinação social, cultural e ambiental. Também não conhece o que é Saúde Coletiva nem o que é a Reforma Sanitária Brasileira. Certamente, também, nunca leu a Constituição da República nem a Lei Orgânica da Saúde. Creio que a luta continua em busca de uma consciência sanitária crítica que vai além da academia e do ideal de saúde da 8ª. CNS. Mas para tanto é imprescindível radicalizar a crítica e o projeto da Reforma Sanitária. E, nessa perspectiva, produzir um conhecimento capaz de articular o pensamento e a ação estratégicos, com a constituição de novos sujeitos, organização e práxis.

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