A recente publicação do Professor Eugênio Vilaça – O lado oculto de uma pandemia: a terceira onda da Covid 19 ou o paciente Invisível – somou-se a uma série de alertas acerca da descontinuidade do cuidado de pessoas com condições crônicas durante o período pandêmico. “A terceira onda tem sido denominada, alternativamente, de ‘paciente invisível […]. O choque de demanda promovido pela COVID 19 tornou invisíveis para os sis temas de atenção à saúde as necessidades das pessoas com condições de saúde não COVID-191
Hoje, no Sistema Único de Saúde (SUS), multiplicaram-se as ocasiões de diálogo sobre as Redes de Atenção à Saúde (RAS) e o Modelo de Atenção às Condições Crônicas (MACC), bem como as iniciativas para sua implantação, como a sempre mais reconhecida e solicitada proposta da Planificação da Atenção à Saúde formulada pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). No entanto, mesmo com um forte reconhecimento e envolvimento das equipes assistenciais e uma intenção sempre manifestada por parte dos gestores, assim como os “invisíveis usuários com condições crônicas, essas iniciativas ainda ficam ao lado das decisões mais estratégicas.
Pouco antes do início da pandemia, o Ministério da Saúde (MS) pactuou na tripartite e publicou a Portaria nº 2.979 que instituiu o Programa Previne Brasil, novo modelo de financiamento de custeio da Atenção Primária à Saúde (APS), desdobrado nos componentes de capitação ponderada, pagamento por desempenho e incentivo para ações estratégicas, com os objetivos de aumen tar o acesso das pessoas aos serviços da APS e o vínculo entre população e equipe, com base em mecanismos que Induzem à responsabilização dos gestores e dos profissionais pelas pessoas que assistem. A implementação do programa acabou postergada devido à pressão assistencial, social e política gerada pela covid-19.
Depois de quase duas décadas do relatório Cuidados inovadores para condições crônicas: componentes estruturais de ação, publicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2003, “[…] um passo importante para o preparo dos responsáveis pela elaboração de politicas, dos planejadores do setor saúde e de outros agentes relevantes para o empreendimento de ações que visem a redução das ameaças impostas pelas condições crônicas à população, aos sistemas de saúde e às economias”; depois de pouco mais de dez anos da Portaria nº 4.279, publicada pelo MS no final de 2010, que estabeleceu as. diretrizes para a organização das redes de atenção, tomando diretriz da politica de saúde proposições amadurecidas em anos anteriores acerca dos modelos de organização dos sistemas de saúde mais adequadas para o SUS e “[…] trazendo a necessidade de ampliação do foco da atenção para o manejo das condições crônicas”; depois de dois anos de uma pandemia que se tornou sindemia, na qual uma porção preocupante daqueles usuários invisíveis se tor naram visiveis nos indices de morbimortalidade; depois da estratégia nacional de vacinação anticovid-19, que definiu como público-alvo prioritário usuários adultos com morbidades crônicas de alto risco, assustando os governos e a sociedade pela grande proporção da população nessa situação; depois de tudo isso, é evidente e imperativa a necessidade de dar uma atenção adequada e definir formas efetivas de cuidar das pessoas com condições crônicas.
Programa Previne Brasil
Nesse sentido, o Programa Previne Brasil pode se tornar uma grande ocasião para esse passo de qualificação da atenção no SUS. Para aproveitar bem essa oportunidade, é necessário que seja implantado segundo a sua finalidade última, que é melhorar a capacidade de resposta às necessidades da população, e não somente pelo necessário financiamento.
No entanto, é importante a compreensão de que organizar os pro cessos diretamente relacionados com os indicadores do programa implica necessariamente a organização do macroprocesso de atenção às condições crónicas. Este, por sua vez, requer a organização do conjunto de macropro cessos da APS, uma vez que a pessoa com condição crónica é aquela que é residente em um território de abrangência de uma unidade de saúde; que é conhecida por meio do cadastro individual e familiar; que é vinculada a uma equipe; que é integrante de uma família que deve ser classificada por risco; que demanda e acessa os serviços de saúde; que é acompanhada no seu domicilio, recebendo visitas e atendimentos quando necessário; que é inserida no acompanhamento programado longitudinal, com agenda garantida para isso; mas que também é acolhida e tratada sempre que ocorre agudização de seu quadro clínico; que precisa participar de ações preventivas de agra vamento, relacionadas com a mudança de comportamentos; que, para isso, precisa de apoio para fortalecer sua capacidade de autocuidado; que requer renovação da prescrição de medicamentos; e que pode vir a precisar de cuidados paliativos nas situações de maior gravidade. Essa atenção complexa a essas necessidades complexas é possível se for organizado e garantido um conjunto de serviços e processos, desempenhados com qualidade por uma equipe competente, como propõe a Construção Social da APS.
Assim, a proposta de ciclos de melhoria dos processos de cuidado das condições crônicas deve se estender para o conjunto dos macroprocessos da APS e, da mesma maneira como foi pensado no Previne Brasil, deve propor um painel de indicadores mais amplo, que possibilite à equipe monitorar e avaliar a qualidade da sua prestação de cuidados.
Conass Documenta
Este CONASS Documenta é dividido em duas partes, com o objetivo de subsidiar as secretarias estaduais e municipais de saúde nas ações da Planificação da Atenção à Saúde. Na Parte 1, apresenta uma proposta de trabalho para melhoria do desempenho nos indicadores do Previne Brasil, fundamentada no Modelo de Melhoria (MM). Na Parte 2, propõe um painel de indicadores para monitoramento e avaliação dos macroprocessos da APS, seguindo a lógica da metáfora da construção da casa, utilizada na Construção Social da APS.
A sistematização proposta é resultado de inúmeras discussões reali zadas no âmbito da Planificação da Atenção à Saúde, grande contribuição do Conass para implantação e qualificação das RAS. A experiência conduzida por seu grupo de assessores, consultores e facilitadores é preciosa pela interação direta com as secretarias estaduais e municipais, com seus profissionais e gestores, e até mesmo com seus usuários beneficiados, constituindo um es paço efetivo de Construção Social, em que teorias são verificadas; hipóteses, testadas; resultados, avaliados; e o fruto de tudo isso, sistematizado, como propõe este documento.
Certamente, a sua utilização possibilitará um novo ciclo de aprendizagem, fazendo crescer as pessoas e amadurecer os processos de cuidado nas RAS.