Luciana Jaccoud (Prefácio)
Produzir políticas públicas em contexto federativo tem se constituído em efetivo desafio para o Estado brasileiro, tendo em vista suas largas responsabilidades na disponibilidade de serviços e em patamares qualificados de provisão, bem como na redução das desigualdades sociais e territoriais. É em torno dessa questão que o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mais uma vez disponibiliza uma relevante publicação, trazendo luz sobre o tema ainda pouco investigado da atuação dos estados na produção de políticas públicas. Com a direção de um competente colegiado de coordenadores, este livro reúne um conjunto original e qualificado de estudos que, produzidos por um destacado grupo de pesquisadores, abordam diferentes políticas setoriais e tratam, sob distintas dimensões, tanto as relações intergovernamentais como as iniciativas do ente estadual na organização de suas próprias políticas.
Essa contribuição se insere no campo de estudos sobre políticas públicas e federalismo, que vem se afirmando com vigor no Brasil. Nas últimas três décadas, em um contexto marcado pelo compromisso constitucional com a universalização dos serviços públicos, pelo estabelecimento de autonomia política e competências compartilhadas entre os entes federados, bem como pela ampliação de responsabilidades e recursos dos níveis subnacionais, novos desafios emergiram no âmbito das relações intergovernamentais. Esse cenário favoreceu a emergência de uma nova agenda de pesquisas, que possibilitou ampliar o nosso conhecimento sobre como, sob a égide de uma constituição descentralizadora, o federalismo brasileiro pode escapar dos riscos de paralisia decisória, aumento da competição, superposição ou mesmo omissão e avançar em arranjos institucionais que favoreceram a coordenação, a cooperação e a negociação intergovernamental.
Desse modo, as relações intergovernamentais passaram a ocupar lugar central na análise de políticas públicas e geraram uma profícua literatura que vem permitindo avançar no nosso entendimento sobre as mudanças operadas na forma adotada de descentralização e seus impactos no desempenho dos governos central e subnacionais. Passamos a conhecer melhor o processo de descentralização e suas variáveis político-institucionais. Além disso, avançou-se na investigação das estratégias institucionais que forjaram novas dinâmicas intergovernamentais, incluindo o crescente papel regulador que o governo federal assume a partir da década de 1990 até meados da década de 2010, bem como a progressiva mobilização de instrumentos de coordenação, removendo obstáculos e favorecendo a integração entre as esferas de governo com repercussões positivas para a uniformidade das políticas públicas e a redução da desigualdade em ofertas e resultados.
Os estudos avançaram expressivamente na análise da relação entre governo federal e municípios, nível de governo cujas atribuições foram significativamente ampliadas. Contudo, pouca atenção havia sido dedicada à atuação do nível estadual de governo. O uso continuado da categoria entes subnacionais permitiu a inclusão dos estados nos esforços analíticos do processo de descentralização e das relações intergovernamentais sem, entretanto, favorecer o melhor entendimento sobre as especificidades desse ente intermediário, seja no que diz respeito ao seu papel e trajetória na regulação e na oferta própria de serviços públicos, seja na sua relação com os demais níveis de governo, tanto o federal como o municipal, ou na relação horizontal entre estados no esforço de produção de políticas públicas. Tampouco favoreceu as investigações em torno da capacidade de agência dos estados no exercício da autonomia decisória, efetivo, mesmo que reduzido, em algumas políticas públicas.
Uma ampla agenda de pesquisa permanecia, assim, aberta, com várias questões se apresentando em torno do tema. Como, ao longo das últimas décadas, foram mobilizadas e aperfeiçoadas as capacidades fiscal e administrativa dos estados para a formulação, implementação e coordenação de políticas públicas? Como os estados vêm exercendo sua autonomia na formulação e implementação de políticas próprias e sob qual desenho institucional? Como reagiram os estados aos ganhos de autonomia local na implementação de ofertas públicas e ao avanço das ações indutivas da coordenação federal? Como os estados se organizaram para participar dos múltiplos espaços e dinâmicas de interação entre os níveis de governo no jogo federativo que atravessa a formulação e a implementação de políticas públicas? Como variou a atuação dos estados na produção de políticas públicas próprias ou compartilhadas? Como se diversificaram as iniciativas em oferta e em regulação e coordenação, quer entre os estados, quer em um mesmo estado, entre diferentes políticas públicas? É sobre esse amplo campo de investigação, com repercussões analíticas e também práticas, tendo em vista o aprimoramento das relações intergovernamentais para a produção de políticas públicas, que as pesquisas apresentadas nesta publicação contribuem de maneira relevante.
Partindo da experiência internacional e avançando com riqueza sobre a experiência brasileira, o livro aprofunda questões conceituais e empíricas sobre a forma como o federalismo afeta a produção de políticas públicas e como o desenho e o processo de implementação das políticas públicas afetam o arranjo federativo, tornando mais complexas as relações entre os níveis de governo, promovendo inovações institucionais e alterando a organização da ação estatal. Reafirmando outros estudos, demonstra ainda que as relações intergovernamentais nas políticas públicas não estão apartadas do contexto político e das estratégias adotadas pelos diferentes níveis de governo e pelos diversos atores políticos. O livro avança igualmente no debate sobre a relação variável entre descentralização e federalismo, examinando como trajetórias de centralização e descentralização podem se alterar não apenas ao longo do tempo mas também por tipo de política setorial.
De fato, se a dinâmica das relações entre os níveis central e local de governo são elementos analíticos centrais para a produção de decisões e de implementação de políticas públicas, o papel do nível intermediário de governo e suas interações não são menos importantes. Ao contrário, como influentes atores políticos e como autoridade detentora de autonomia política e administrativa, eles operam redes próprias de serviços públicos, intervêm no processo decisório nacional e local e possuem relevante capacidade de atuação na articulação e coordenação horizontal e vertical. Seu desempenho, contudo, é diverso e desigual entre estados e entre políticas setoriais, como se demonstra neste livro, repercutindo na produção de políticas públicas e na capacidade para o enfrentamento do alto grau de desigualdade que marca a Federação e a sociedade brasileira. Cabe, por fim, ressaltar que este livro também enriquece o campo de estudos em políticas públicas ao promover um enfoque multidisciplinar em torno do tema.
O conhecimento advindo de agendas de pesquisas em ciência política, mas também da economia, sociologia, direito e administração pública permite um aprofundamento sobre o papel dos governos estaduais, bem como sobre as interações entre as três esferas de governo. Debruçando sobre um tema pouco explorado na literatura especializada, os textos aqui reunidos enriquecem o debate, acolhendo análises oriundas de distintos campos disciplinares e mobilizando diferentes arcabouços teóricos, categorias e abordagens analíticas. Tratam de diversos aspectos da atuação dos estados na produção de políticas, apresentando evidências empíricas que explicam trajetórias passadas e indicam tendências, abrindo novos terrenos de investigação e favorecendo o avanço dos estudos e pesquisas sobre o tema. Temos, assim, em mãos, uma contribuição fundamental para melhor compreender a produção de políticas públicas no Brasil.
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