Paulo Gadelha, José Carvalho de Noronha, Leonardo Castro e Telma Ruth Pereira | Saúde Amanhã (Fiocruz) 

Diante de um mundo permeado por incertezas, trazer perspectivas sobre o futuro do sistema de saúde brasileiro é um grande desafio que a “Iniciativa Brasil Saúde Amanhã”, da Fundação Osvaldo Cruz, se propõe. Nesta edição, um grupo de especialistas esmiúça temas particularmente desafiadores, como o financiamento da saúde, a relação público-privada e as perspectivas da economia global e do sistema produtivo brasileiro após a pandemia da Covid-19. Tais textos contribuem para a compreensão do leitor sobre como essas esferas têm afetado o Brasil e o Sistema Único de Saúde.

Para tanto, este livro parte de uma abordagem mais ampla das questões econômicas globais e nacional, presentes marcadamente nos capítulos 1 e 2; traz uma discussão ampliada sobre a questão dos gastos com saúde, apresentando as bases e os limites do financiamento, no capítulo 3; para, finalmente, ampliar a lupa e discutir mais especificamente a sustentabilidade do SUS em diferentes vertentes, a partir do capítulo 4.

No primeiro capítulo, a questão da incerteza e o nível de previsibilidade de determinados fenômenos, como a pandemia da Covid-19, são trazidos à tona pelo autor numa alusão à “lógica do cisne negro”, livro de Nassim Taleb, lançado em 2007, que chamava a atenção para o fato de que estamos sujeitos constantemente ao imprevisível, ao contrário do que a maior parte dos economistas sustenta. Isto porque a maioria das previsões que fazemos parte do histórico de fenômenos conhecidos, quando deveríamos também nos instrumentalizar para acontecimentos que não são necessariamente passíveis de previsão. Acontecimentos inesperados, como “cisnes negros”, são fenômenos que geralmente são reconhecidos apenas quando vistos pela primeira vez, como é o caso do animal aludido. Neste capítulo, o autor questiona a imprevisibilidade da Covid-19, tendo em vista se tratar de uma pandemia, fenômeno ocorrido em diversos momentos na história da humanidade. Deste modo, por ser um evento passível de previsibilidade, caso houvesse um esforço mundial focado em questões desta natureza, os resultados não seriam tão impactantes, como a grande crise econômica, social e sanitária gerada. Uma discussão significativa realizada no texto diz respeito às políticas econômicas adotadas pelo conjunto dos países e seus impactos em diferentes dimensões: geopolítica, ambiental, energética, sanitária, etc., apontando importantes implicações para o “fiscalismo ortodoxo” adotado nos últimos anos no Brasil, inclusive no curso da pandemia.

No capítulo 2, os autores irão aprofundar as análises relativas ao futuro do Brasil, trazendo aqui também o contexto de “incertezas críticas” e traçando “cenários econômicos para as próximas duas décadas”. A partir de um panorama das principais políticas econômicas adotadas historicamente, o texto aponta os limites das políticas focadas na redução de gastos públicos no Brasil, cujo ápice se dá com a Emenda Constitucional n°. 95 (EC 95), que congela os gastos públicos por 20 anos e aponta suas consequências nefastas para a ampliação da desigualdade, aproveitando a oportunidade para discutir as limitações das políticas distributivas adotadas no país. O capítulo seguinte traz uma análise do gasto em saúde, desde suas bases de financiamento, pontuando criticamente sua dinâmica e as tendências para o Brasil. Tal tema é amplamente discutido em diversas esferas na área de saúde, devido ao histórico subfinanciamento do SUS, que tem se aprofundado com a EC 95 e tornado público, com os impactos gerados pela pandemia, que ampliou fortemente as demandas por cuidados de saúde diretamente relacionados ao vírus, adiando, por seu turno, uma série de outras demandas que tendem a aumentar a pressão sobre o SUS, sistema universal e integral. O Brasil é um país que destina uma das menores fatias dos gastos públicos para a saúde, não só entre aqueles com sistemas também universais, como entre os que têm sistemas privatistas. Essa dicotomia entre a redução de gastos públicos com saúde, tanto em relação ao Produto Interno Bruto (PIB), quanto em relação aos gastos públicos como um todo é apontada como desafiadora para a sustentabilidade do SUS, marcadamente com a ampliação massiva do segmento privado. Isso num contexto em que a incorporação de tecnologias em saúde, nem sempre baseadas nas melhores evidências (como vimos com os protocolos de tratamento para a Covid-19), está tornando o cuidado com saúde cada vez mais caro. Nesse sentido, o grande desafio é aumentar a arrecadação de tributos, com a garantia de que estes sejam de fato destinados ao sistema público, de modo a inverter o mix público-privado hoje existente no país, onde o percentual dos gastos privados supera o percentual dos gastos públicos como proporção do PIB.

No capítulo 4, as autoras irão, por sua vez, problematizar uma questão que atinge direta e indiretamente aqueles que prestam os cuidados de saúde à população, alertando, já na introdução, que “os regimes de contratualização e remuneração de serviços são operações-chave na sustentabilidade dos sistemas de saúde dos países”, visto que, dentre outros fatores, afetam o desempenho dos prestadores. Partindo desse ponto de vista, são apresentados os modelos de contratualização existentes e seu histórico, de maneira que o leitor possa compreender a importância de se fazer a distinção de objetivos entre os agentes públicos e privados nesse processo. Entretanto, isso requer que os sistemas de incentivo e os marcos regulatórios sejam muito bem delineados para o cumprimento de uma agenda comum, para que os modelos de contratualização garantam que o interesse público prevaleça – o que se apresenta como um enorme desafio.

A relação público-privada é retomada no capitulo seguinte. Neste texto, os autores apontam evidências acerca do desempenho das empresas de planos de saúde, num contexto onde tais instituições, mesmo com uma crise sanitária da magnitude da Covid-19, conseguem aumentar suas receitas e seu lucro, aprofundando um processo de concentração que já estava em curso. Finalmente, problematizam para o leitor as consequências do crescimento da participação de componentes privados no sistema de saúde no Brasil. São trazidas evidências de que o aumento das receitas é fruto do aumento dos prêmios pagos pelos segurados. E que, por sua vez, a elevação destes não é respaldada por alterações no volume proporcional de despesas associadas à sinistralidade das operadoras com assistência médicohospitalar. Destacam como relevante a constatação da ausência, omissão e rejeição de auxílio de empresas de planos e seguros de saúde durante a emergência sanitária, bem como de uma agência reguladora que não atua objetivamente numa regulação que garanta resguardar o consumidor.

O livro se encerra com uma discussão sobre a reestruturação do setor privado de serviços de saúde no Brasil, com foco nas atividades de administração hospitalar, seguros de saúde e medicina diagnóstica, segmentos que, a partir de 2015, foram abertos à exploração do capital internacional, inclusive com a possibilidade de empresas estrangeiras participarem como controladoras dos empreendimentos de assistência à saúde. Segmentos nos quais a atuação dos fundos financeiros está presente, na reestruturação dos diferentes negócios dos conglomerados da área, determinando o padrão de financiamento e de concorrência, pautada nas operações de fusões e aquisições, tanto no Brasil, como no mundo.

Com uma abordagem tão rica, interdisciplinar e intersetorial, este livro é um convite à imersão na discussão sobre o futuro do SUS, através das lentes de renomados especialistas.

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Erika Aragão
Presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde (Abres)

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