“Ninguém duvida que qualquer pesquisa sobre políticas deva considerar dimensões temporais, mas muito menos gente pensa em levar em conta o espaço”. A observação é do professor livre-docente do Departamento de Ciência Política da USP e pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole, Eduardo Cesar Leão Marques, em entrevista ao Região e Redes. Evidentemente que o espaço aparece em pesquisas, uma vez que tudo se localiza. No entanto, segundo ele, a dimensão é estática, como se fosse dada. Quando, na realidade, o espaço é construído cotidianamente. Na entrevista Marques fala também sobre a importância do estudo da governança nas análises de políticas públicas, tema de seu mais recente trabalho.

 

Região e Redes – Em artigo recentemente publicado, o senhor comenta sobre a diversidade de significados e usos do termo governança, e, ao mesmo tempo, ressalta a utilidade do conceito para a compreensão de fatores associados à produção de políticas nem sempre valorizados na literatura nacional. Fale um pouco mais sobre as possíveis contribuições do enfoque da governança para o campo de análise de políticas públicas no Brasil.

 

Eduardo Marques – Acredito que o conceito de governança seja importante por permitir jogar luz sobre processos essenciais para o entendimento das políticas públicas que se localizam fora das agências do Estado, assim como dimensões informais e até ilegais. Para o estudo das políticas no Brasil a incorporação sistemática dessa dimensão é essencial pela importância de atores privados, comunidades profissionais, ONGs e movimentos sociais em nossos setores de políticas. A incorporação sistemática de aspectos informais também pode avançar muito se tivermos um conjunto de conceitos e métodos para capturá-la.

Em termos comparativos internacionais isso é importante, pois essa idéia é relativamente aceita entre nós – embora nem sempre seja levada a sério analiticamente -, mas só recentemente se disseminou. Na literatura internacional a atenção a essas dimensões cresceu muito pela presença de processos de privatização ocorridos a partir dos anos 1980, mas também pelo aumento de formas diversas de participação social em políticas. Com isso, temos espaço para a produção de teorias que construam pontes entre políticas constituídas em sistemas políticos com diferentes graus de institucionalização.

 

RR – Como a abordagem e métodos de análise de redes de políticas públicas se aplicam aos estudos da governança?

 

EM – A análise de redes pode ajudar a operacionalizar em termos analíticos o estudo dos padrões de inter-relação entre atores privados e públicos conectados por vínculos diversos (formais, institucionais, informais, ilegais) e construídos por diversas razões (intencionais, com outras intenções ou ao acaso). Diversas outras abordagens são também importantes, como a institucional – a dimensão do federalismo, por exemplo, é central em quase todas as nossas políticas -, mas a análise de redes tem a sua contribuição específica.

Uma dimensão adicional importante da análise de redes é que não parte de premissas fortes quanto às formas de organização dos campos de políticas. Cabe à análise empírica investigar, o que Charles Tilly [sociólogo norte-americano] chamava de estruturalismo a posteriori. O método tampouco parte de princípios normativos sobre os vínculos, como as idéias de privatização, democratização ou clientelismo, por exemplo. Isso permite uma maior precisão na análise empírica: como esses vínculos são usados, o que veiculam e que consequências produzem é um problema empírico, não uma premissa teórica construída anteriormente (o que usualmente leva os analistas a deixar de lado o que não se enquadra a princípio como o que se escolheu normativamente).

Por outro lado, em especial, vale não reificar o uso das redes, pois há uma moda em torno delas recentemente. Como qualquer método e ferramenta analítica, elas podem ser úteis ou não. As redes tendem a ser mais úteis em estudos sobre processos e políticas com intensa interdependência entre atores, ou com atores muito diferentes e localizados em várias escalas (em qualquer fase da produção de políticas). Mas isso não é geral e a decisão de mobilizar o método ou não é uma escolha analítica.

 

RR – Como você analisa o papel desempenhado pelos atores privados nas políticas sociais brasileiras? Qual a importância desses atores nos estudos sobre governança?

 

EM – Os atores privados são extremamente importantes nas políticas públicas brasileiras se nos ativermos ao uso estrito do setor privado orientado ao lucro. Certamente fazem parte desta lista vários tipos de provedores privados de serviços e equipamentos para o Estado.

Há uma premissa nessa afirmação que talvez seja importante assinalar. Gostemos ou não, as políticas do Estado não são produzidas (apenas) para beneficiar os interesses de quem as receberá como ‘objeto’ ou ‘demanda’. Uma parte importante acontece pelos interesses, estratégias e ações de atores envolvidos com a produção das políticas. Aí se incluem agências estatais, burocracias, comunidades profissionais, mas também empresas privadas que constroem edifícios, infraestruturas, vendem serviços e equipamentos. Recentemente têm ocorrido mudanças importantes nos formatos de prestação de vários serviços estatais, no Brasil e no exterior. Isso gera desafios analíticos, mas basicamente o problema é o que já se colocava anteriormente: entender como as interações entre atores privados e públicos, imersos em ambientes institucionais, produzem políticas.

 

RR – De que forma a dimensão territorial pode ser considerada nas pesquisas relacionadas à governança e às redes de políticas públicas?

 

EM – É interessante, pois ninguém duvida que qualquer pesquisa sobre políticas deva considerar dimensões temporais, como legados, dinâmica, transformações e relações de causa e efeito. Mas muito menos gente pensa em levar em conta seriamente o espaço. Ele evidentemente aparece em pesquisas, pois tudo se localiza. Mas essa dimensão é pensada de forma estática, como se fosse dada. Tanto políticas quanto atores se localizam espacialmente, agem sobre configurações espaciais herdadas (mas constantemente reconstruídas) e constroem espaço cotidianamente (assim como todos nós em nossas atividades cotidianas).

Mas assim como no caso das redes, dimensões e processos associados fortemente ao espaço podem ser importantes ou não. O espaço tende a ser mais central na implementação de políticas, mas isso também não é geral. Decidir se ele entrará com força nas análises ou não é um problema analítico. Não me parece possível, por exemplo, estudar um programa como o PSF [Programa de Saúde da Família, atualmente designado Estratégia
Saúde da Família – ESF] sem incorporar o espaço fortemente, ou entender a disseminação de DSTs ou drogas sem considerar as cidades onde elas ocorrem. A distribuição espacial de equipamentos de saúde também tem uma enorme influência sobre os resultados da política. Por outro lado, para entender as dinâmicas internas a um Conselho de Saúde, o espaço pode ser pouco relevante, mas as redes podem dar uma contribuição de destaque.

 

RR – Que atores, instituições e processos o senhor julga relevantes considerar nos estudos voltados para a governança da saúde em âmbito regional no caso brasileiro?

 

EM – Certamente burocracias e agências estatais de vários níveis, comunidades profissionais (como ator coletivo, mas também como conjunto heterogêneo de atores), provedores privados de serviços (equipamentos, fármacos e, obviamente, hospitais privados), ONGs e movimentos sociais. Muitas vezes é importante considerar também outros setores de política e dimensões partidárias, eleitorais e ligadas à classe política.

 

RR – Comente sobre as parcerias e pesquisas que está desenvolvendo sobre tema e suas possíveis interfaces com a política de saúde.

 

EM – Estou já há bastante tempo distante da área da saúde, mas acho que o que tenho trabalhado sobre políticas talvez possa contribuir indiretamente. No momento, estou envolvido em uma pesquisa comparativa internacional sobre padrões de governança em grandes cidades que inclui casos em Londres, Paris, Cidade do México, Milão e São Paulo. No caso de São Paulo, fizemos um grande mapeamento das transformações da metrópole nos últimos 20 anos que vai sair como livro pela Editora Unesp brevemente e que estou negociando para sair também no exterior. Para os próximos dois ou três anos, o meu grupo de pesquisa está estudando política em vários setores de políticas urbanas – planejamento e uso do solo, grandes projetos, transporte público, trânsito, coleta de lixo e habitação. Mais do que entender cada política em si, a idéia é compreender melhor os padrões de interação entre atores e instituições que estão por trás das políticas, em suas diferenças e semelhanças.

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