Rafael Dias, professor do Centro de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas da Faculdade de Ciências Aplicadas da Unicamp (Campus de Limeira-SP),  explica que um dos objetivos centrais dos estudos sociais da ciência e da tecnologia (ESCT) é compreender as dinâmicas de produção e difusão do conhecimento científico, bem como o desenho e uso de tecnologias nas diferentes esferas da vida privada e social. Ele aborda ainda as aplicações dos ESCT na saúde e oferece farta bibliografia sobre o tema.

 

Região e Redes – O que são os estudos sociais da ciência e tecnologia?

 

Rafael Dias – Há aproximadamente cinco décadas, um conjunto de reflexões e métodos relativamente (e crescentemente) coesos tem se empenhado em oferecer elementos para a compreensão da complexa relação ciência-tecnologia-sociedade nas sociedades contemporâneas. Os “Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia” (ESCT), como esse campo tem sido chamado, pretendem abordar, a partir de um enfoque interdisciplinar, questões associadas à “sociedade na tecnociência” e à “tecnociência na sociedade” (1,2). Ao longo desse extenso período, contribuições de uma série de autores proporcionaram, com relativo sucesso, críticas às visões triunfalistas e mecanicistas a respeito da relação ciência, tecnologia e sociedade. Ao conjunto dessas reflexões deu-se o nome de campo CTS (ou STS, na sigla em inglês).

 

RR – Quais são as principais correntes ou vertentes no interior desse campo de estudo?

 

RD – É possível distinguir pelo menos três vertentes diferentes, a saber: a europeia, dos Estudos da Ciência e da Tecnologia (Science and Technology Studies); a norte-americana, conhecida por Ciência, Tecnologia e Sociedade (Science, Technology and Society) (3); e a latino-americana, à qual se convencionou chamar “Pensamento Latino-Americano em Ciência, Tecnologia e Sociedade – PLACTS (4,5). Essas diferentes correntes oferecem noções fundamentais para pesquisadores das mais diferentes áreas do conhecimento interessados em compreender as dinâmicas e as relações que se manifestam nesses contextos– que, embora segregados pela modernidade ocidental, são absolutamente indissociáveis (6)  – e seus resultados, especialmente em termos de recomendações de políticas (7,8).

 

RR- E a Teoria Crítica da Tecnologia, desenvolvida por Andrew Feenberg? Que contribuições ela traz para essa discussão?

 

RD – A Teoria Crítica da Tecnologia, apresentada por Feenberg (9), parte das reflexões de autores associados à Escola de Frankfurt, em geral pessimistas em relação à possibilidade de criação de condições de controle social da tecnologia, oferecendo uma interpretação interessante sobre o significado político da tecnologia moderna e suas implicações sobre a democracia. Para Feenberg, é preciso superar as visões polarizadas a respeito da tecnologia moderna: não é conveniente encará-la como uma força transformadora que nos impulsiona sempre em direção a um progresso material e moral; tampouco deve ser entendida como a responsável central pelos problemas sociais, econômicos ou ambientais que nos afligem. A tecnologia é, para Feenberg, uma moldura que sustenta as relações sociais e que tende a incorporar os valores que marcam as sociedades contemporâneas. É razoavelmente simples perceber esse tipo de relação se pensarmos em termos de artefatos e sua relação com o contexto social: em um país como o Brasil, onde a memória da hiperinflação ainda é recente – e os hábitos gerados por ela seguem fortes – é comum encontrarmos grandes refrigeradores e alguns congeladores nas residências. É algo que não encontraríamos tão facilmente em um apartamento parisiense, por exemplo, onde o alto custo do metro quadrado, os preços relativamente estáveis, a proximidade entre as residências e os mercados, a forma das pessoas se locomoverem pela cidade, os hábitos de consumo e tantos outros fatores geram um padrão no qual são os pequenos refrigeradores os modelos mais comuns.

 

RR – E como seria possível atuar no sentido de buscar maior controle social sobre a tecnologia?

 

RD – Na maneira como compreende a relação tecnologia-sociedade, Feenberg se propõe a superar o pessimismo frankfurtiano, mostrando que é possível transformar a tecnologia a partir de nichos de atuação social. É algo que observamos, por exemplo, no movimento pelo “parto humanizado”, no âmbito do qual médicos, parteiras, gestantes, pesquisadores e representantes de ONGs se articulam e colocam em xeque a necessidade de se realizar de forma sistemática determinados procedimentos cirúrgicos. Não se trata de uma crítica apenas à tecnificação do parto e a consequente supressão das pacientes no contexto do parto, mas dos valores sociais que embasam a “escolha” de um padrão tecnológico. Assim, a resistência de determinados grupos não se dá apenas no nível político, mas também tecnológico. Caso essa resistência seja bem sucedida, pode, eventualmente, gerar uma mudança tecnológica, induzida pela pressão social.

 

RR – Existem exemplos de estudos aplicados na área da saúde que utilizam essa abordagem teórica?

 

RD – Especificamente na área da saúde, estudos produzidos a partir dos ESCT têm oferecido interpretações interessantes a respeito de temas como controvérsias científicas em questões relacionadas aos efeitos do “fumo passivo” (10), à adição de flúor à água ou ao consumo regular de grandes doses de vitamina C (11); o papel de não-cientistas enquanto importantes atores na dinâmica do conhecimento (12); comunicação e percepção de riscos associados à prática científica (13); subjetividades, valores e interesses na produção de “fatos” científicos (14); a centralidade da ciência e da tecnologia na definição do ser humano (15), dentre outros temas.

 

RR – De que modo os conhecimentos gerados pelos estudos sociais de ciência e tecnologia podem contribuir para o aprimoramento das políticas de saúde? 

 

RD – Compreender as dinâmicas de produção e difusão do conhecimento científico, bem como o desenho e uso de tecnologias nas diferentes esferas da vida privada e social é um dos objetivos centrais dos ESCT. As contribuições desse fértil campo evidentemente transcendem o plano estritamente acadêmico, podendo contribuir significativamente para o aprimoramento de políticas públicas e de estratégias de intervenção a partir da sociedade. Conhecer esse interessante conjunto de reflexões, portanto, é uma tarefa recomendável a pesquisadores, gestores e profissionais que atuam nas áreas que tangenciam as práticas científicas e tecnológicas.

 

Referências

 

1​ CUTCLIFFE, S. (2003) Ideas, máquinas y valores – los estudios de ciencia, tecnología y sociedad. México, D.F.: Anthropos Editorial.

2​ SISMONDO, S. (2004) An introduction to Science and Technology Studies.: Oxford, Reino Unido: Blackwell Publishing.

3​ LÓPEZ CEREZO, J. A. (2004) “Ciência, tecnologia e sociedade: o estado da arte na Europa e nos Estados Unidos”. In SANTOS, L. W. (org.) Ciênciatecnologia e sociedade: o desafio da interação. Londrina: IAPAR.

4​ DAGNINO, R. P.; THOMAS, H. E.; DAVYT, A. (1996) “El pensamiento en ciencia, tecnología y sociedad en latinoamérica: una interpretación política de su trayectoria”. II Jornada Latinoamericana de Estudios Sociales de la Ciencia y la Tecnología.

5​ VACCAREZZA, L. S. (2004) “Ciência, tecnologia e sociedade: o estado da arte na América Latina”. In SANTOS, L. (org.) Ciência, tecnologia e sociedade: o desafio da interação. Londrina: IAPAR.

6​ MARQUES, I. C. (2014) “Labordireitórios”. In: MARINHO, M. G.; SILVEIRA, S. A.; MONTEIRO, M.; DIAS, R. B.; CAMPOS, C. (orgs.) Abordagens em Ciência, TecnologiaSociedade. Santo André: Editora da UFABC.

7​ COZZENS, S. E. & WOODHOUSE, E. J. (1995) “Science, government and the politicsof knowledge”. In: JASANOFF, S.; MARKLE, G.; PETERSON, J. & PINCH, T. (eds.) Handbook of science and technology studies. Thousand Oaks: SAGE Publications.

8​ DAGNINO, R. P. (2007) Ciência e tecnologia no Brasil: o processo decisório e a comunidade de pesquisa. Campinas: Editora da Unicamp.

9​ FEENBERG, A. (2002) Transforming technology: a Critical Theory revisited. Oxford: Oxford University Press.

10 ​SPIESS, M.; COSTA, M. C.; LAGUARDIA, J. (2013) “É proibido fumar: análise de uma controvérsia sobre a exposição passiva à fumaça do tabaco”. Revista Brasileira de Ciências Sociais¸ vol. 28, n° 82.

11​ MARTIN, B. & RICHARDS, E. (1995) “Scientific knowledge, controversy and publicdecision making”. “. In: JASANOFF, S.; MARKLE, G.; PETERSON, J. & PINCH, T. (eds.) Handbook of science and technology studies. Thousand Oaks: SAGE Publications.

12​ EPSTEIN, S. (1995) “The construction of lay expertise: AIDS activism and the forgingof credibility in the reform of clinical trials”. ScienceTechnology and Human Values, vol. 20, nº 4.

13​ JASANOFF, S. (1998) “The political science of risk perception”. ReliabilityEngineering and System Safety, vol. 59, n° 1.

14​ MULKAY, M. (1994) “The tryumph of the pre-embryo: interpretations of the humanembryo in parliamentary debate over embryo research”. Social Studies of Science, vol. 24, nº 4.

15​ ALLENBY, B. & SAREWITZ, D. (2011) The techno-human condition. Cambridge, EUA: The MIT Press.

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