Ana Luiza d’Ávila Viana (1) e Eronildo Felisberto (2) | Na Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil
A organização dos sistemas nacionais de saúde em formatos regionalizados adquiriu importância em muitos sistemas de saúde e tornou-se também desenho inspirador para as mudanças contemporâneas que abraçaram a diretriz da descentralização. Além disso, com menor ou maior ênfase, o tema permaneceu no centro das atenções em todo o percurso de implementação do Sistema Único de Saúde (SUS) em nosso país.
Passados 17 anos da emergência de uma norma técnica do Ministério da Saúde – que indicou a constituição de regiões de saúde pelos estados da Federação (Norma Operacional Básica 01 de 2000) e várias normativas federais de incentivo ao processo de regionalização e a constituição de redes (Pacto pela Saúde de 2006; Decreto Lei 7508, de 2011 e o Decreto 4279 de 2010 que propugna a constituição das RAS) -, é importante relatar o quanto avançamos nesse processo para, desta forma, podermos contribuir com um debate mais aprofundado sobre a regionalização da saúde.
A pesquisa Região e Redes se propõe a estudar e a disseminar conhecimento sobre as particularidades do processo de regionalização no Brasil, entendendo-o como aquele que constitui as regiões de saúde. Por outro lado, levanta a hipótese de que a organização regional dos serviços e das ações de saúde é um instrumento importante para a universalização que implicará a melhoria de alguns indicadores e, consequentemente, um melhor desempenho das regiões de saúde.
A razão dessa assertiva é que regular e direcionar o fluxo de serviços e pessoas dentro de um território delimitado significa introduzir melhorias no acesso aos serviços e um uso mais racional dos recursos, atendendo de forma integral as necessidades de saúde.
Discutir essa questão não é uma tarefa fácil. Além do estudo das características dos pontos de atenção à saúde nos territórios e do comportamento dos fluxos de pessoas entre os serviços intra e inter-regiões de saúde, é necessário que expliquemos esses movimentos em função também de outras variáveis que extrapolam a nem sempre evidente disponibilidade de serviços, ou disponibilidade de oferta.
Para isso, são necessários estudos de campo, com levantamento de dados primários, abarcando inúmeros aspectos referentes à política, ao planejamento e à gestão em saúde. Ou seja, é necessário um olhar integrado para as diferentes dimensões e/ou aspectos que compõem a atividade de satisfazer necessidades em saúde.
Foi o que fez a pesquisa em cinco regiões de saúde das cinco macro-regiões brasileiras: Entorno de Manaus e Alto do Rio Negro, no Norte; Baixada Cuiabana, no Centro-Oeste; Petrolina e Juazeiro, no Nordeste; Norte-Barretos e Sul-Barretos, no Sudeste; Carbonífera e Costa Doce, no Sul.
Essas regiões abarcam, pela divisão Urbano Regional do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), uma metrópole nacional, uma capital regional e municípios de diferentes densidades de redes urbanas e, além de áreas de fronteira estadual e internacional, regiões com diferentes composições de serviços públicos e privados e pertencentes a diferentes agrupamentos, segundo a tipologia proposta pela pesquisa.
As mesmas regiões contemplam populações que variam de 384.175 a 2.119.145 habitantes, com variadas densidades demográficas, taxas de crescimento da população e taxas de envelhecimento populacional, além de um desempenho regional não homogêneo, segundo o Indicador de Desempenho Regional criado pela pesquisa. A escolha dessas regiões para o estudo de campo deve-se justamente à variabilidade presente nos territórios, o que nos permite checar o quanto essa composição específica de características impacta o processo de regionalização e qual o peso particular desses aspectos frente a outros, como o percurso histórico da política de saúde nessas mesmas regiões.
A equipe da pesquisa, formada por pesquisadores de diferentes instituições, escolheu como temas prioritários de estudo a governança do processo de regionalização, a atenção primária, a Rede de Urgência e Emergência e a vigilância em saúde.
Como traçadores, optou-se por acidente vascular cerebral (AVC) para doenças crônicas, e por dengue e tuberculose para vigilância.
Realizou-se mais de 30 itinerários terapêuticos para AVC nessas mesmas regiões a fim de obter uma visão integrada do percurso dos pacientes e dos serviços de saúde.
Produziu-se um estudo específico sobre a movimentação médica e as formas de organização da oferta de serviços médicos nas cinco regiões, utilizando dados secundários e entrevistas feitas nas regiões de saúde.
Foram produzidos também estudos complementares sobre oferta e características da formação em saúde nessas regiões e seu impacto no processo de regionalização, bem como sobre o escopo de práticas na atenção primária em saúde.
Um resultado de toda essa atividade foi a criação de um amplo banco de dados sobre essas mesmas regiões (secundários e primários) coletado por meio de questionários estruturados (um total de 221), e inúmeras entrevistas com roteiros previamente elaborados.
Participaram, em média, 25 pesquisadores em cada estudo regional, auxiliados por pesquisadores das instituições colaboradoras do campo: Fiocruz, em Manaus; Universidade Federal da Bahia e Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira (IMIP), em Petrolina e Juazeiro; Universidade Federal do Mato Grosso na Baixada Cuiabana; e Universidade Federal do Rio Grande do Sul na região Carbonífera e Costa Doce.
O enfoque metodológico da pesquisa se apoiou na identificação de quatro dimensões que podem explicar o processo de regionalização:
A primeira constitui-se no processo político propriamente dito, voltado a identificar os espaços de atuação, negociação e conflito na região, processos e fluxos decisórios e a condução da política. Além de apontar também um panorama sobre a incorporação tecnológica e respectivas decisões regionais, incluso o peso da judicialização recente nessas regiões.
Outra dimensão, a estrutural, traduz a disponibilidade e suficiência de recursos humanos físicos e financeiros, as formas de contratação de recursos humanos e serviços, e o monitoramento e a avaliação.
A dimensão da organização pretende identificar os critérios de conformação da Rede de Atenção à Saúde (RAS), o planejamento, a gestão, a integração sistêmica entre serviços, a regulação e o acesso.
Por fim, a dimensão da intersetorialidade, busca evidenciar as ações intersetoriais presentes na região.
É dentro de cada uma dessas dimensões que discutimos a atenção primária, a rede de urgência e emergência e a vigilância em saúde. Com isso, poderemos ter para cada nível de atenção uma visão integrada do político, do estrutural e do organizacional.
Consideramos que essas diferentes dimensões possuem, ao mesmo tempo, diferentes graus de autonomia e aspectos de interdependência. Somente uma visão integrada sobre o conjunto das dimensões permite identificar quais problemas são mais recorrentes em cada uma delas separadamente e, de que forma, as dimensões podem interferir, conjuntamente, no processo de regionalização.
A expressão disso é a criação de um indicador composto que evidencie o grau de implementação do processo de regionalização e seus óbices mais evidentes. Poderemos olhar comparativamente diferentes realidades e colocar na balança a interferência de aspectos relativamente específicos, como são as histórias sanitárias locais. Dada a abrangência e relevância da temática aqui abordada para uma avaliação ampla, embora não exaustiva, do processo de regionalização dos sistemas de saúde no Brasil, a Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil – que inclui no seu escopo estudos sobre Saúde Coletiva – não poderia deixar de acolher as publicações inseridas no presente número.
Este número especial da Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil é composto por 11 artigos originais voltados para os aspectos da pesquisa discutidos neste editorial: um artigo que retrata as escolhas metodológicas e a comparação do indicador de regionalização nessas regiões e mostra a construção dos atributos da regionalização e seu desempenho em diferentes realidades.
Seguem-se artigos sobre os resultados da pesquisa voltados a atenção primária, mobilidade médica, vigilância em saúde, fluxos de oferta e incorporação tecnológica.
Esperamos que todo esse conteúdo proporcione ao leitor um balanço do próprio processo de regionalização e de seus entraves atuais, além de uma rica discussão metodológica sobre como melhor avaliar esse transcurso. Boa leitura!
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(1) – Ana Luiza d’Ávila Viana. Departamento de Medicina Preventiva. Faculdade de Medicina. Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil.
(2) – Eronildo Felisberto. Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira. Recife, PE, Brasil.