Fernando Gaiger Silveira e Maria Luiza Campos Gaiger | Saúde Amanhã
A pandemia da Covid-19 deixou patente o quão profundas são as desigualdades na sociedade atual ao ficarem explícitas as diferentes possibilidades de mitigar seus efeitos entre países, regiões, cidades, bairros e minorias. De outra parte, os olhos se voltaram aos sistemas públicos de saúde e sua importância nas medidas sanitárias e no atendimento aos doentes. Não resta dúvida que mudanças se farão presentes nesse setor da economia que já representa nos países centrais mais de 10% do produto. De pronto, pode-se afirmar que a pandemia mostrou que o sistema de atendimento ambulatorial e hospitalar deve ser ampliado para os novos surtos pandêmicos, que têm se tornado regra nos últimos tempos. Ou seja, trabalhar com um grau de subutilização, o que implica na potencialização de um dos móveis do gasto em saúde: a doença de custos presente no setor da saúde.
No presente trabalho não se busca realizar projeções do gasto em saúde, nem mesmo do setor público, mas analisar os estudos prospectivos sobre o tema. Com isso, cotejar as tendências que tais estudos apontam para o gasto com os caminhos que vem se experimentando na alteração dos sistemas tributários, dadas as mudanças nos mercados de trabalho, de consumo, patrimoniais e financeiros – as bases de incidência dos tributos – e a incorporação da agenda ambiental na tributação.
Vale dizer que esses estudos prospectivos se avolumaram justamente quando, na última década, observou-se um aumento da participação do consumo de saúde no produto das economias. Considerando que vem se adotando há certo tempo ajustes nos sistemas previdenciários, as pressões advindas do gasto público em saúde sob as finanças públicas, quando há crise econômica, refletem-se em problemas de ordem fiscal. Assim, o mote dessas análises é buscar a sustentabilidade, modelando cenários alternativos com e sem políticas de contenção de gastos.
O Sistema Único de Saúde (SUS) é o único sistema público de cobertura universal e integral, financiado com tributos gerais, de organização federativa e com mais de 100 milhões de beneficiários. Os assim constituídos, salvo na questão federativa, como Reino Unido, Canadá e Suécia, têm o sistema público como predominante na oferta de bens e serviços de assistência à saúde; o gasto público responde, nesses três países, por entre 70 e 85% do gasto em saúde. Os baseados no esquema público de financiamento por meio de seguro social compulsório exibem, também, elevados percentuais do gasto público.
Como se mostrará, o caso brasileiro, como já dito por vários estudiosos, é ímpar, pois, a despeito do arcabouço legal e institucional do sistema público nacional, seu gasto público é inferior ao gasto privado via planos e realizado diretamente pelas famílias. Isso não se observa em países de renda alta e de renda média alta, nem mesmo nos Estados Unidos e no México; o único país de gasto per capita superior ao brasileiro em saúde que tem uma participação inferior do gasto público é a Suíça. Fica, assim, patente que o esforço para se constituir um sistema público não conseguiu ampliar a participação do gasto público, a despeito dos progressos e do crescimento expressivo do gasto per capita – taxa de crescimento de 3,5% anual, entre 2000 e 2017, em termos reais. Pode-se creditar essa dificuldade em ampliar a participação do gasto público à instabilidade nas fontes de financiamento, ao apoio fiscal e tratamento regulatório concedido ao segmento da saúde mercantil e à valoração societária dos chamados serviços públicos mercantilizados.
O perfil do gasto total em saúde no Brasil se mostra muito regressivo, pois os ganhos redistributivos do gasto público são superados pela concentração do gasto privado e seu peso nos orçamentos familiares, pela inequidade do gasto tributário em saúde e pelo financiamento regressivo do financiamento público. No caso da saúde, o gasto público tem um perfil de distribuição levemente pró-pobre, uma
vez que, em 2008/09, os 50% mais pobres se apropriaram de 55% do gasto público em saúde, enquanto os 20% mais ricos responderam por 13% da despesa pública. No caso do gasto privado, os dados de 2017/18 são diametralmente opostos, já que os 50% mais pobres responderam por 18% do total gasto ante 54% realizado pelo 20% mais ricos. A análise mostra ainda que o grau de concentração do gasto privado em saúde é mais elevado que o índice de Gini das despesas de consumo (em valores familiares per capita), o que indica ser uma rubrica que concentra essas despesas. Efetivamente, segundo Vaz & Hoffmann (2020), o coeficiente de concentração das despesas de saúde, em 2017/18, de 0,540 supera o índice de Gini das despesas de consumo de 0,487. Soma-se a isso a concessão de benefícios fiscais no Imposto de Renda para Pessoa Física (IRPF) que são concentrados no topo da distribuição da renda e com magnitude bastante expressiva, da ordem de R$15 bilhões em 2017, o que representa 14% do gasto público federal em saúde no mesmo ano. Por fim, os tributos indiretos representam 60% do financiamento à saúde pública brasileira, o que significa que os mais pobres têm seu poder de compra mais afetado que os ricos devido à incidência desses impostos. Segundo Silveira & Passos (2017), enquanto no décimo mais pobre da população (em termos de renda total familiar per capita) a incidência dos tributos indiretos alcançava 28% de renda total, nos 10% mais ricos essa participação não ultrapassava 10%. Assim, no caso brasileiro, esse bem meritório e central ao desenvolvimento, cuja presença do Estado na oferta e na regulação do mercado tem uma face mercantilizada, reflete-se em uma desigualdade expressiva no consumo de bens e serviços de saúde.
Como se apontou, o gasto público é muito progressivo, ao passo que o gasto privado segue, grosso modo, o grau de concentração da renda, que como se sabe é muito elevado no país. Caso o gasto público respondesse pelo consumo de saúde em patamar similar ao observado em países com sistemas públicos de saúde universais e de amplo financiamento, sua incidência progressiva predominaria e as despesas de saúde teriam efeitos redistributivos, mesmo considerando a regressividade no financiamento. Não resta dúvida que para a mudança no perfil do gasto em saúde é preciso que o gasto público cresça às expensas do privado, alterando políticas regulatórias, fiscais e creditícias de apoio ao consumo privado.
Concretamente, o Brasil exibe um gasto per capita em saúde superior ao dos países de renda média alta, uma participação do gasto em saúde no PIB relativamente alta, um arcabouço normativo-institucional de um sistema público universal e integral, mas uma participação do gasto público similar a de países de renda média baixa e baixa. Ou seja, uma clivagem imensa no consumo de saúde.
Como se verá, os estudos prospectivos do gasto em saúde e de sua composição entre público e privado (via planos de saúde ou out-of-pocket) empregam modelos que se ancoram no comportamento do gasto no período recente – meados dos anos 90 a final dos anos 2010. No caso brasileiro, as projeções apontam um crescimento pequeno da participação do setor público na saúde, bem como um aumento do gasto em saúde como participação do produto inferior ao projetado para países de nível de renda semelhante. O decréscimo na participação do setor privado é muito pequeno, fazendo com que o mix público-privado se preserve. No caso do gasto per capita e da participação no PIB, parcela do resultado se deve ao fato de o país já exibir níveis relativamente elevados, implicando menor potencial de crescimento. Assim sendo, as pressões sobre o financiamento do segmento são menos pronunciadas, pois a solução para o financiamento do gasto crescente em saúde continuará sendo a preservação do papel central dos gastos privados, ou seja, das famílias. Observa-se que esse processo pode ser visto como uma disputa entre “ricos e saudáveis” versus “pobres e não saudáveis”, onde os primeiros vêm conseguindo segurar o crescimento do gasto público (SUS), obstaculizando o caminho para cobertura universal e integral de qualidade.
Dois fatores contribuem muito para esse papel central da medicina mercantil e sua aceitação na sociedade. De um lado, a conquista por uma saúde pública e universal na Constituição de 1988 não implicou uma mudança substantiva no perfil do financiamento, dado que se preservou e ampliou o apoio aos mercados, em especial via benefícios fiscais. Soma-se a isso o fato de que, dada a histórica diferença no acesso e na qualidade dos serviços educacionais e de assistência médica entre a população de renda baixa e mediana e os situados no quinto superior da distribuição, o consumo de educação e saúde privada é marca de ascensão social ao deixar de precisar da provisão pública.
Vale lembrar que a oferta pública de bens e serviços de saúde antes da Constituição de 1988 tinha a marca da segmentação e estratificação social, com categorias de trabalhadores contando com o seguro previdenciário e a assistência médica. O processo de eliminação da discriminação na cobertura previdenciária e em saúde de origem pública, que culminou na Constituição de 1988, desenvolveu-se ao lado do crescimento da oferta privada, notadamente dos planos de saúde, com apoio estatal e fazendo parte das pautas reivindicatórias dos trabalhadores dos setores dinâmicos da economia (metalúrgicos, bancários, petroleiros) e dos servidores públicos, especialmente federais. Hoje é usual os assalariados formais contarem com a afiliação a planos de saúde via empresas, sendo, ademais, um salário indireto muito valorizado. No setor público se observa o mesmo fato, com os governos coparticipando do financiamento de planos de saúde, quando não criando carteiras específicas para servidores de instituições públicas e de carreiras. Verifica-se, assim, o mesmo modelo estratificado que o seguro social abarcava, agora em modalidade de seguro privado (planos), que as diferentes categorias profissionais acessam.
Importante citar que a concessão de benefícios tributários ao consumo de bens e serviços de saúde via Imposto de Renda para Pessoa Física e para Pessoa Jurídica (IRPF e IRPJ), é contemporânea à Constituição, mostrando o pacto fiscal que foi se construindo com a classe média tradicional dos anos 70 ao final dos 80, com a concessão desses benefícios para o consumo privado com vistas a mitigar os possíveis efeitos da universalização da provisão de educação básica e de assistência à saúde: pressões fiscais e qualidade dos serviços. Ou seja, a universalização veio junto com o apoio estatal ao consumo privado das camadas médias, antes as beneficiárias da provisão discriminatória da previdência, da saúde e da educação públicas.
O SUS conta com múltiplas fontes de financiamento, além das acima enumeradas (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL e recursos dos tributos PIS/COFINS), visto que estados e municípios respondem por 43% do financiamento, empregando para tanto seus tributos como parcela dos recursos das transferências obrigatórias. Não resta dúvida que a ampliação do leque de fontes se deve, ainda, aos mínimos constitucionais que estados e municípios devem despender com a saúde. Assim, nosso sistema público de saúde se inscreve como de cobertura universal, tanto da população, como dos tratamentos, e financiado com tributos gerais. Estudos apontam que os sistemas nacionais de saúde em que o gasto público tem papel preponderante e é financiado por tributos gerais se caracterizam por serem os mais progressivos. Isso porque tornam ricos e saudáveis os maiores responsáveis pelo financiamento do sistema público de saúde destinado aos não saudáveis e pobres. Evidentemente que os primeiros preferem se eximir desse nus fiscal, uma vez que eles podem pagar os serviços médicos e ambulatoriais via seguros de saúde e/ou gastos diretos.
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