Luiz Felipe Stevanim | Revista Radis
“O SUS é o futuro possível para que a gente tenha de fato saúde no país.” A frase de Luciana Dias de Lima, pesquisadora titular da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP) da Fiocruz, mostra que o sistema público brasileiro precisa honrar o seu legado de três décadas e seguir na luta para garantir o direito à saúde da população. “Tivemos avanços do ponto de vista da incorporação de milhares de pessoas que não tinham esse direito assegurado e passam a ter, tanto em relação a serviços de assistência médica individual quanto a ações de natureza mais coletiva que avançam no SUS a partir da Constituição de 88. Isso não é pouca coisa”, considera.
A existência de um sistema público e universal, porém, vai na contramão das políticas de “Estado mínimo”, que de acordo com a pesquisadora estiveram presentes ao longo da história de implementação do SUS. “Podemos dizer que o SUS nadou contra a corrente em vários momentos, com maior ou menor dificuldade”, avalia. No entanto, segundo ela, com todas as desigualdades e especificidades do país, foi possível fazer com que se capilarizasse no território nacional e expandisse o acesso a ações e serviços de saúde. “Dizer que saúde é um direito de todos e dever do Estado coloca nosso patamar de luta política num nível bem mais avançado do que outros países que compartilham dos mesmos problemas que enfrentamos no Brasil, como é o caso de vários países da América Latina”, analisa Luciana, que é também co-editora chefe da revista “Cadernos de Saúde Pública”.
“Certamente a saúde que temos hoje no Brasil é muito superior àquela que tínhamos no final dos anos 80. Não é à toa o reconhecimento que a sociedade dá ao SUS nesse contexto de crise sanitária, econômica e humanitária pela qual estamos passando com a pandemia de covid-19”, reforça. Mesmo com um número expressivo de casos e mortes em consequência do novo coronavírus, há uma percepção favorável ao SUS na sociedade. “A população reconhece que sem o SUS estaríamos numa condição infinitamente pior. É como se a gente estivesse incorporando cada vez mais a ideia de que sem o SUS não há futuro para a saúde no Brasil”, acrescenta. No entanto, segundo Luciana, mesmo com a ampliação da base de apoio social à saúde pública, não há priorização da saúde na agenda dos governos da mesma maneira.
Formada em Medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Luciana possui doutorado em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). É líder do Grupo de Pesquisa Estado, Proteção Social e Políticas de Saúde. “O SUS não pode ser defendido somente por pessoas vinculadas à saúde. Tem que ser valorizado pela população de forma geral e por outras organizações da sociedade civil não ligadas diretamente ao setor”, afirma.
Leia a entrevista completa da professora e pesquisadora da ENSP/Fiocruz, que é parte da reportagem de Radis para a edição de dezembro sobre o papel do SUS na vida da população brasileira.
Para quem está chegando agora nesse debate, que defende o SUS, mas ainda não conhece muito bem a sua história: entre o que se almejou no marco da Constituição e aquilo que se implantou de fato nos 30 anos seguintes, quais foram as principais conquistas e as maiores limitações do SUS?
Um grande desafio que se colocou com a instituição do SUS, na Constituição de 1988 e posteriormente com as leis orgânicas da saúde, foi assegurar a saúde como um direito de todos. Com isso, eu diria que, no Brasil, tivemos avanços do ponto de vista da incorporação de milhares de pessoas que não tinham esse direito assegurado e passam a ter, tanto em relação a serviços de assistência médica individual quanto a ações de natureza mais coletiva que avançam no SUS a partir da Constituição de 88. Isso não é pouca coisa, não é trivial. Dizer que saúde é um direito de todos e dever do Estado coloca nosso patamar de luta política num nível bem mais avançado do que outros países que compartilham dos mesmos problemas que enfrentamos no Brasil, como é o caso de vários países da América Latina. A partir disso tivemos uma expansão muito significativa de ações e serviços em todo o país. Hoje são raros os municípios desprovidos de qualquer tipo de atenção à saúde. Isso é um avanço em decorrência do SUS e tem que ser valorizado. Com todas as desigualdades, diferenças e especificidades do vasto território brasileiro, com suas regiões, se conseguiu capilarizar no território nacional, expandindo o acesso das ações e serviços de saúde com o SUS. Essa é uma questão muito importante.
Como a sociedade enxerga as mudanças trazidas pelo SUS?
Certamente a saúde que temos hoje no Brasil é muito superior àquela que tínhamos no final dos anos 80. Não é à toa o reconhecimento que a sociedade dá ao SUS nesse contexto de crise sanitária, econômica e humanitária pela qual estamos passando com a pandemia de covid-19. Ainda que a gente tenha tido no Brasil um número de casos muito expressivo, com uma letalidade muito elevada, a população reconhece que sem o SUS estaríamos numa condição infinitamente pior. É como se a gente estivesse incorporando cada vez mais a ideia de que sem o SUS não há futuro para a saúde no Brasil. O SUS é o futuro possível para a gente ter de fato saúde no país. Do ponto de vista dessa questão que envolve a universalidade e a equidade, é óbvio que ainda temos muitos desafios a enfrentar. Até porque os determinantes sociais, que estão na origem das desigualdades, não são resolvidos somente por meio do sistema de saúde — ainda que sistemas universais como o SUS permitam reduzir a expressão das desigualdades sociais na saúde. Mais uma vez, a covid nos mostra que a ocorrência da doença e sua letalidade é muito maior para alguns grupos socioeconômicos e isso é expressão das desigualdades históricas socialmente determinadas no Brasil. Esse seria o grande desafio a ser enfrentado no Brasil, o que compromete o próprio princípio da equidade.
O SUS propõe a garantia da saúde como dever do Estado e isso requer financiamento adequado. Em contrapartida, assistimos um processo crescente de “desfinanciamento” do SUS. Que consequências isso traz para a garantia do direito à saúde?
A ampliação da base de apoio social ao SUS foi bastante evidente nesse período mais recente, mas não há priorização da saúde na agenda dos governos da mesma maneira. Uma das expressões disso é a falta de prioridade da saúde no orçamento. Essa é uma questão que precisa ser superada — tanto a Emenda Constitucional (EC) 95 quanto a imposição da política de contenção de gastos e de destruição do próprio Estado. O SUS requer capacidade pública de intervenção. Isso também exige recursos adequados para outras políticas sociais, não só a saúde, porque todas essas áreas estão sendo atingidas pela contenção de gastos, que deveriam ser norteados fundamentalmente pelas necessidades de melhoria das condições de vida e de redução das desigualdades no Brasil. Essa é uma questão a ser enfrentada: a priorização do SUS na agenda dos governos, que pressupõe a garantia de recursos necessários e suficientes para a garantia do direito à saúde.
A questão da regionalização sempre foi um desafio para o SUS e a covid-19 acentuou esse problema, com a crise de coordenação e a dificuldade de articulação entre União, estados e municípios. Como lidar com as desigualdades regionais e diminuir os vazios assistenciais para atender as necessidades de saúde da população?
Um aspecto importante a ser considerado são as desigualdades regionais e como elas se apresentam no território brasileiro, por meio das especificidades e necessidades de determinados territórios e regiões que exigem um olhar e políticas diferenciadas. No SUS, tivemos avanços significados em diversas áreas por meio de incentivos para a criação de parâmetros nacionais de políticas, como é o caso da atenção primária. Por meio de uma atuação importante do próprio Ministério da Saúde, em colaboração com estados e municípios, conseguiu-se constituir uma série de diretrizes e orientações de políticas, com incentivos para que fossem implementadas no Brasil, com a superação de obstáculos impostos por determinados governos. Com isso, tivemos ganhos do ponto de vista da criação de parâmetros nacionais, com incentivos para a adoção dessa política — estou falando especificamente da Estratégia Saúde da Família —, mas claro que o modo como as políticas, o sistema e as ações se expressam em território nacional é muito diverso. Isso requer uma maior ênfase no enfoque regional e territorial, para o processo de formulação de políticas.
Como se dá a articulação entre governo federal, estados e municípios? O que é preciso melhorar nesse quesito?
O governo federal tem um papel importante, mas os governos estaduais e municipais são cruciais para a valorização dessa dimensão regional na formulação e implementação de políticas de saúde. Uma questão que atravessa a regionalização tem a ver com as características do arranjo federativo brasileiro. Para organizar de modo regional, isso requer uma ação concertada e colaborativa de diversos entes governamentais. Essa ideia de coordenação federativa e cooperação entre governos, em diferentes níveis, é um aspecto crucial para o avanço da organização regional do SUS. É a ideia de prover de modo integral as ações e serviços requeridos por determinados territórios e populações. O SUS teve avanços muito significativos do ponto de vista da institucionalidade que foi criada para promover processos de planejamento e gestão coordenada entre os governos, mas ainda existem muitos desafios a serem enfrentados para o avanço da regionalização. As próprias Comissões Intergestores Regionais (CIR), que hoje estão instituídas em todo o território nacional, nas Regiões de Saúde, foram um avanço nesse sentido de criar esse locus para o processo de planejamento e acordos entre entes, para formulação e implementação de uma forma mais colaborativa entre os governos, mas a gente sabe que em muitas regiões do país elas apresentam institucionalidade frágil, na medida em que não contam com representação efetiva dos gestores municipais. Muitas vezes as CIRs não estão devidamente articuladas com outras estruturas de gestão, por exemplo: as estruturas regionais das secretarias estaduais de saúde; os consórcios públicos que existem nessas regiões que não funcionam necessariamente de forma articulada com a CIR e acabam tendo locus diferente de planejamento e gestão intergovernamental. Tudo isso precisa ser aprimorado, com mais incentivo dos mecanismos de transferência financeira para os municípios, mas também dos estados para os municípios organizados nas regiões, que valorize essa organização regional, integrada e cooperativa entre os governos. A gente precisa fomentar mais e dar mais institucionalidade a esse processo. Também precisa de uma atuação mais efetiva dos governos estaduais na regionalização, ainda que a gente valorize o planejamento envolvendo todos os gestores. No Rio de Janeiro, toda a crise que atingiu o governo estadual e se somou à crise federativa mais geral do Estado brasileiro mostra como a atuação dos governos estaduais na saúde é essencial — no caso do Rio, a situação só não foi mais crítica por uma atuação mais forte do próprio Conselho de Secretários Municipais de Saúde (Cosems).
Que desafios estão colocados para a atenção básica e a Saúde da Família e o que esperar de seu futuro?
Essa questão do decreto [10.530, de 26/10 e revogado em 28/10, que previa parcerias privadas nas Unidades Básicas de Saúde] é curiosa. O decreto sinalizou para essas parcerias privadas, aumentando ainda mais o espaço de atuação na atenção primária, mas a gente sabe que a expansão do setor privado já vinha ocorrendo no Brasil pelo menos desde 2017. Em artigo publicado no “Cadernos de Saúde Pública”, em 2020, Márcia Morosini, Tatiana Wargas e Angélica Fonseca analisam três eixos de mudança na atuação do setor privado na atenção básica. O primeiro foi a mudança das regras que permeiam as transferências de recursos federais para os municípios (o financiamento federal da atenção primária), que rompe com as transferências do PAB fixo, a partir do Previne Brasil, que foi o nome que se deu às alterações no modelo e na lógica de financiamento. O programa rompe com o piso da atenção primária e define que o financiamento será com base no número de pessoas cadastradas nas unidades básicas. Isso em si já fere a lógica da universalidade, na medida em que os recursos são transferidos considerando apenas aqueles que estão cadastrados, e não a totalidade da população. Esse foi um eixo muito importante de mudança. Além disso, houve a implantação da Adaps [Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde], que confere uma nova modalidade jurídica a uma organização com responsabilidade sobre a formulação de políticas, formação na área e mesmo contratação. Isso tudo abre espaço para o setor privado. Portanto, eu diria que esse decreto é coerente com o próprio modelo da Adaps. Terceiro, a carteira de serviços, que define um escopo bastante limitado de serviços que devem ser cobertos pela atenção primária, ferindo inclusive a lógica de atenção com base comunitária, que é um dos princípios da atenção primária.
O que esse conjunto de mudanças representa em relação ao avanço do setor privado sobre o SUS?
São três eixos de mudanças que ampliam de forma muito significativa o espaço de atuação do privado na atenção primária. São processos em curso. Mesmo antes disso, a gente sabe que em vários municípios do país já havia uma atuação muito grande das organizações sociais (OS) ao gerir os serviços de atenção primária, gerando um processo de terceirização da gestão das unidades de saúde. É claro que o SUS não rompeu com a atuação do setor privado, que já era importante na época da Constituição de 88. O SUS herda um setor privado bastante desenvolvido na saúde e, ao longo de todo seu processo de implementação, houve muitos incentivos do próprio Estado para reorganização desse setor que hoje passa por mudanças em decorrência da financeirização da economia e mudanças na dinâmica de atuação das empresas. O SUS se expande e o setor privado adquire um dinamismo econômico maior do que já tinha. Isso é um desafio que está posto para o futuro do SUS.
Que interesses e agendas conflitantes estão postas e ameaçam a sobrevivência do SUS?
São muitas formas de interação entre público e privado que se expressam no sistema de saúde brasileiro. E essa interação que se dá entre público e privado não necessariamente se orienta em prol dos interesses coletivos, do asseguramento do direito. Se o imbricamento é tão significativo que impede romper totalmente com o setor privado, de que forma podemos fortalecer o caráter público dos serviços? Como fortalecer a regulação pública em prol dos interesses coletivos e do asseguramento do direito coletivo à saúde? Isso também requer o fortalecimento do Estado e de sua capacidade pública de liderança, regulação, organização e orientação desse setor.
Na pandemia, por exemplo, esse limite de atuação do privado ficou muito claro: do atendimento à realização dos testes. Mas para isso é preciso de fato um Estado forte, com a recuperação da capacidade pública de atuação em prol dos interesses coletivos. Esse perfil vai na contramão da política de Estado mínimo, algo que marcou em muitos momentos a implementação do SUS. Podemos dizer que o SUS nadou contra a corrente em vários momentos, com maior ou menor dificuldade.
Que futuro podemos esperar do SUS?
Houve uma ampliação da base social de apoio ao SUS. Esse é um legado positivo, se podemos dizer isso, da pandemia. O SUS não pode ser defendido somente por pessoas vinculadas à saúde pública. Tem que ser valorizado e defendido pela população de forma geral e por outras organizações da sociedade civil não ligadas diretamente ao setor. Com todos os problemas, hoje a população reconhece mais o papel do SUS. Mesmo parlamentares e políticos, e organizações de outros setores de políticas públicas, reconhecem a importância do SUS. Agora, como trazer isso para a prioridade da agenda governamental? Essa é a grande questão. A gente viveu um momento de eleições municipais. Já que reconhecemos a importância da saúde e do SUS, é preciso saber quem são os candidatos que valorizam o direito à saúde e o SUS. No processo democrático, essa valorização da saúde na pauta política é muito importante e nós, como sociedade, devemos estar atentos a isso.
Foto: Radilson Carlos Gomes