No processo decisório da política, o que menos importa é a própria política de saúde e seus princípios constitucionais. É o que diz a socióloga Silvia Gerschman nesta entrevista concedida à Região e Redes sobre sua mais recente pesquisa, que resultou na publicação Saúde e Políticas Sociais no Rio de Janeiro. “Quando os novos gestores políticos reorganizam o espaço institucional não assumem nenhum compromisso formal de dar continuidade à política anterior, pelo contrário, cada novo gestor entra na arena institucional com o partido embaixo do braço, o que significa que os compromissos político partidários se tornam função precípua de governo”, explica.

A professora e pesquisadora titular da pós-graduação em Saúde Pública da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz, fala também sobre o que pensa da regionalização da saúde: “Só será possível integrar o sistema de saúde nos seus níveis de complexidade e criar um sistema de referência e contrarreferência para a orientação e encaminhamento dos pacientes se o conjunto dos municípios do Estado estiver previamente regionalizado”.

Região e Redes – O Rio de Janeiro é o cenário da coletânea Saúde e Políticas Sociais no Rio de Janeiro, um lançamento da Editora Fiocruz, que a senhora organizou juntamente com a economista Angela Moulin Santos (da UERJ). Por que o Rio de Janeiro? Existem peculiaridades nas políticas sociais do Estado em relação a outras regiões do país?

Silvia Gerschman – O tema do livro corresponde à ordem de questões com que venho me defrontando desde os idos dos 80 do século XX, questões que também importam muito à minha colega, Angela Moulin Penalva Santos(*). Na época dava meus primeiros passos no estudo da política de saúde no Estado do Rio e no país, como um todo. A propósito da importância que o estado teve nas mãos dos movimento sanitário, dos sanitaristas e dos movimentos sociais na definição da Reforma Sanitária brasileira. Após 30 anos e no final da minha carreira institucional, não a profissional, essa não finaliza, foi um forte incentivo compreender e rever os problemas de saúde que afligem a sociedade e o desenvolvimento do SUS/RJ.

O direito à saúde e complementares, incorporados pela Constituição Cidadã, 28 anos atrás, permanecem ainda em estado incipiente. Entender quais os problemas da implantação de políticas públicas territoriais como saúde, moradia, urbanização e serviços de diferente natureza nos levou à incorporação de ferramentas de análise originadas em diversas disciplinas capazes de tratar a resistência a políticas públicas direcionadas à efetivação de direitos sociais de cidadania no estado. Partimos de um diagnóstico em aberto da política, entendendo que o estado tem um perfil próprio marcado pela sua trajetória institucional de capital da República e estado, dois estados, Guanabara e Rio de Janeiro, e, por último, a unificação de ambos em um só, o Estado do Rio de Janeiro. Isto oferece uma singularidade que deixou a sua marca na política e na sociedade carioca. Assim as políticas são formadas e condicionadas de maneira diferenciada à de outros estados e regiões do país.

RR – Uma das propostas do livro é tentar entender “por que não reconhecemos solução de continuidade e sim permanente fragmentação entre ciclos de governo? Ou, em outras palavras: “Por que prevalece um choque permanente com gestões de governos anteriores, independentemente de qual seja a política?”. O que a sua pesquisa nos revela sobre esta abordagem?

SG – O estudo sobre a política de saúde se estende de 2003 a 2012. As gestões da SES [Secretaria de Estado de Saúde] formam parte dos governos de Rosinha Garotinho e de Sergio Cabral. Ainda que ambos governadores pertençam ao PMDB e sejam eleitos pelo mesmo partido, as gestões divergem bastante e dizem respeito às relações diversas estabelecidas entre Estado e União, nestes dois períodos de governo. Situações do tipo tem atravessado o conjunto de políticas contempladas pelo livro, tais como moradia, urbanização e acesso a serviços de natureza diversa. Nas instituições e na ocupação de órgãos do governo, costuram-se e reproduzem-se por “obra e graça” de cada nova gestão política o tecido organizacional previamente existente. Neste, os novos gestores reorganizam o espaço institucional com políticos da sua confiança, para isso “expulsam” os gestores que estão em retirada para dar lugar aos novos. Não se trata apenas de um ritual, não existe nenhum compromisso formal de dar continuidade à política anterior, pelo contrário cada novo gestor entra na arena institucional com o partido embaixo do braço, o que significa que os compromissos político partidários se tornam função precípua de governo. Nesta modalidade de processo decisório da política, o que menos importa é a própria política de saúde e seus princípios constitucionais, de uma saúde de carácter público, universal, integrada e intersetorial.

RR – Qual a solução para superar a fragmentação do sistema de saúde?

SG – O compromisso de que qualquer que seja o partido de governo, a política de saúde, terá que implementar o SUS tal como definido na Constituição de 1988.

RR – O livro identifica as razões pelas quais o Estado do Rio de Janeiro não consegue efetivar políticas sociais integradoras, capazes de estender a cidadania social para o conjunto da sociedade fluminense?

SG – Existem diversas razões para não termos até hoje um sistema integrado em seus graus de complexidade na atenção à saúde. Parte destas razões já foram abordadas em outras perguntas. A integração da política de saúde requer uma estreita relação com a regionalização do sistema. De fato, só é possível integrar o sistema de saúde nos seus níveis de complexidade e criar um sistema de referência e contrarreferência para a orientação e encaminhamento dos pacientes se o conjunto dos municípios do Estado estiver previamente regionalizado.

Deste modo, poderiam ser desenhados sistemas de serviços integrados de forma a poder acompanhar os pacientes quando da necessidade de utilizar serviços especializados ou clínicos existentes no território; seja nas regiões, nos limites das mesmas e/ou nas proximidades das regiões vizinhas. Sem os serviços, considerando a localização efetiva dos mesmos no território, não é possível a integração dos mesmos em uma rede de serviços. As negociações entre gestores acerca dos recortes regionais fizeram com que alguns municípios manifestassem interesse em integrar outras regiões de saúde, o que contribuiria para a racionalização e organização regional dos serviços. Também houve iniciativas de conformar uma nova região, relacionada ao Complexo Petroquímico do Estado. Mas as propostas e iniciativas diversas de municípios não se concretizaram e manteve-se o desenho anterior das regiões do Estado. Entretanto, interesses e projetos econômicos relacionados ao desenvolvimento regional expressos no caso do Consórcio Intermunicipal de Desenvolvimento do Leste Fluminense (Conleste) foram tratados de modo isolado, não sendo incorporados no processo de regionalização da saúde.

RR – Como a senhora descreveria a atuação dos municípios fluminenses na gestão da saúde?

SG – Não se pode dizer que há uma atuação dos municípios fluminenses. Após duas décadas e meia de implementação da municipalização no contexto federativo brasileiro, o fortalecimento institucional dos municípios tem resultados aquém das expectativas criadas com seu protagonismo em políticas sociais. Mas essas questões observadas pela Angela Moulin, e por ela denominada de “federalismo simétrico brasileiro”, não permitem que o fortalecimento possa ser experimentado pelos 5.570 municípios do país, dada a polarização espacial nos maiores municípios, que tornam os entes federativos efetivamente muito mais fortes do que a grande maioria dos municípios. Situação esta que também se observa no Estado do Rio de Janeiro, onde a força do conjunto dos municípios é bastante desigual e a participação na política de saúde é, também, bastante heterogênea.

RR – O que a senhora recomendaria para resolver o problema da dificuldade de acesso de pacientes aos serviços de referência regional? Uma rede regionalizada de saúde estaria entre as soluções?

SG – De fato a regionalização avançou bastante no que se refere à formalização desses espaços decisórios, mas o desenvolvimento da proposta permanece frágil e continua incipiente. Assim será enquanto não existam mecanismos de implementação da política, ou seja coalizões necessárias direcionadas ao desenvolvimento efetivo da política de regionalização e integração do sistema de saúde. Isto acontece com a maioria dos impasses que o SUS atravessa. As divergências entre o estado e os municípios são um entrave para as políticas de desenvolvimento regional e para a programação e compartilhamento dos recursos financeiros. À medida que a regionalização não foi efetivada e estendida ao estado como um todo, a integração do sistema de saúde nos seus níveis de complexidade, ou seja, a atenção primária, média e de alta complexidade, fica inviabilizada, da mesma forma que se mantém e crescem as dificuldades de acesso ao sistema de saúde. O problema do SUS é o desinteresse no seu andamento e financiamento adequado e é de tal complexidade que não se resolve com uma recomendação. Nenhuma rede é solução alguma, considerando que as políticas sociais estão sendo cada vez mais recortadas e restritas em favor de uma política generalizada de diminuição do papel do Estado e do financiamento de políticas de caráter público e universal. A regionalização somente pode ser construída na prática do território do estado e com o estabelecimento de alianças em prol de políticas sociais públicas e universais.

(*) Angela Moulin Penalva Santos é professora associada da Faculdade de Ciências Econômicas e dos programas de pós-graduação em Economia e em Direito da Cidade, ambos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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