Uma das soluções para melhorar o acesso à saúde e torná-lo sustentável para o enfrentamento da inevitável inversão da pirâmide etária populacional brasileira daqui a 30 anos pode ser o incremento das relações público-privada no Sistema Único de Saúde (SUS). Em 2015, setores da indústria, hospitais, organizações e federações criaram o Instituto Coalizão Saúde (ICOS) que, além de ser uma nova voz na discussão da saúde no Brasil, traz uma agenda que contempla temas como financiamento, gestão, planejamento regional, entre outros. Região e Redes ouviu Giovanni Guido Cerri, professor da Universidade de São Paulo (USP), ex-secretário estadual de Saúde e vice-presidente do ICOS para fomentar o debate sobre as propostas e planos que podem reorientar as políticas de saúde no país nos próximos anos.

 

Região e Redes: O Instituto Coalizão Saúde (ICOS) surge como uma nova voz no debate sobre saúde no Brasil. Qual o objetivo desse grupo?

 

Giovanni Cerri: Quando decidimos criar algo voltado a pensar saúde, queríamos que fosse propositivo e articulasse todo o setor produtivo da saúde. Isso é importante porque às vezes as propostas saem da Federação das Santas Casas, ou de outro segmento da indústria, mas falta uma articulação global do setor para, de fato, melhorar o acesso da população à saúde. Como nós podemos ajudar de forma propositiva em uma reorganização da saúde? Sentimos que saúde é sempre colocado como agenda prioritária em qualquer projeto político e, rapidamente, ela é esquecida, mas continuamos com os mesmos problemas: de financiamento, agravamento da judicialização, dificuldade de acesso a população e coisas que nunca são implantadas, como o cartão SUS.

Vivemos numa espiral que evolui muito lentamente. Nesses últimos 30 anos houve melhoria em alguns aspectos relacionados à implantação do sistema, mas é muito mais lento do que o necessário e vai se agravar agora com a mudança da pirâmide etária.

Então, é preciso uma ação do setor saúde de forma organizada e propositiva para dizer quais são os nossos grande problemas. Vamos tentar resolver em conjunto e levar propostas para o governo. Estamos falando de uma questão de sobrevivência para todos. Vamos tentar, apesar das diferenças que existem entre setores dos participantes do ICOS, nos unir e fazer uma agenda que consideramos essencial.

 

RR: Essa agenda contempla o setor saúde como um todo ou é apenas do setor privado? O ICOS tem propostas para o SUS?

 

GC: A agenda contemplou linhas de atuação, inclusive isso foi votado pelos integrantes do grupo. Foram feitas várias propostas e o fomos escolhendo os tópicos que consideramos mais relevantes e que mereceriam uma discussão mais rápida e prioritária. Não é uma agenda de saúde privada. O SUS é um sistema único que move o sistema público e o privado suplementar. Nós achamos que não dá para separar essas agendas. Elas são uma só. E dentro desse grupo [o privado suplementar] existem pessoas que atuam com o setor público, como a Federação das Santas Casas e Hospitais Filantrópicos do Estado de São Paulo (Fehosp), os hospitais filantrópicos e a própria Fundação Faculdade de Medicina (USP), uma instituição que atua prioritariamente no setor público. Então, não existe uma distinção entre público e privado.

Esse debate é mais uma questão ideológica de discurso. Afinal, mais da metade das internações do país são feitas por hospitais privados conveniados e até mesmo por prefeituras. Em São Bernardo do Campo (SP), a Prefeitura que sempre teve uma ligação forte com o Partido dos Trabalhadores e quase todo o atendimento lá é feito por organizações sociais. Às vezes é um discurso ideológico, mas na verdade todo mundo está sentindo que se não houver a parceria com o setor privado não vai ter atendimento a população. Essa é a realidade. Uma coisa é o discurso, outra é a questão prática de o público e o privado hoje andarem juntos para dar a assistência suficiente ao cidadão.

 

RR: Os parceiros que compõem o ICOS reconhecem na regionalização e na construção das redes de atenção algo que mereça destaque na política de saúde? Por quê?

 

GC: A regionalização é fundamental e é um item de sobrevivência para o funcionamento do SUS. Um dos grandes fatores que ajudam a desorganizar a saúde é justamente não ter esse mecanismo de legislação como mecanismo funcionante. Esse atendimento de pacientes que vão de uma cidade a outra, de uma região a outra, de um estado a outro procurando atendimento, que deveria ser dado regionalmente, é algo que desorganiza, dificulta o planejamento e faz com que responsáveis se eximam da responsabilidade. Ou seja, tem muitas situações em que o prefeito e autoridades incentivam ou dão condições para que o paciente saia da sua região e procure outras regiões de atendimento. Isso é muito ruim para o paciente, para a família, tem um custo muito elevado. Então a regionalização tem que ser considerada uma medida prioritária para que o sistema funcione e para que se possa ter um planejamento adequado.

O conceito da regionalização é adequado e certo. Existem inúmeras Santas Casas que são pequenos hospitais e são insustentáveis para as prefeituras. Um hospital que abriga de 30 a 40 leitos não se sustenta economicamente. Então, o conceito de regionalização deve englobar não um município, mas uma série de municípios que se articulem, que se transformem em cooperativas. Escolhe-se um hospital regional que possa atender a média complexidade e regionaliza-se o atendimento de alta complexidade em gestões mais amplas do estado. Ou seja, está na hora de evoluirmos nessa questão da governança regional, de organizarmos essa regionalização em grupos de cidades, grupos de municípios.

O Estado pode ajudar nessa organização. Mapear quais hospitais regionais atenderão   determinadas demandas. Acho que esse seria um passo importante para consolidar o Sistema Único de Saúde. Em São Paulo nós trabalhamos muito a regionalização. Dividimos o Estado em regiões, mas observamos que algumas dessas regionais de saúde não têm o atendimento integral. E quando olhamos o país, têm estados que não conseguem fornecer, ou fornecem muito pouco, atendimento terciário. É muito importante pensarmos na regionalização após essa experiência inicial do SUS, temos que evoluir nessa direção.

 

RR: O modelo do SUS universal, integral é incompatível com a capacidade de financiamento do Estado brasileiro?

 

GC: Tenho trabalhado mais com o Poder Judiciário, no Comitê de Saúde do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Sinto que a resposta dessa questão depende da interpretação do que está na Constituição.

Mesmo dentro do judiciário as interpretações são diferentes. O fato de dizer que é uma saúde integral e equânime não significa oferecer tudo para todos. A meu ver o que o SUS e a Constituição preconizam é que se possa dar um atendimento adequado de saúde nas três esferas, atendimento primário, secundário e terciário. Não significa dar qualquer tipo de medicamento, qualquer tipo de tratamento, qualquer tipo de cirurgia. Isso é incompatível até em países de altíssimo desenvolvimento e países com renda per capita muito mais elevadas que a nossa.

Existe uma cobrança hoje para que se esclareça o que o SUS deve oferecer e o que eventualmente as pessoas têm de procurar em outras situações porque está fora dos protocolos do SUS. É importante também que novos tratamentos importantes para um grande grupo de pacientes sejam incorporados de forma mais rápida, evitando ações judiciais. Mas não pode prevalecer o direito individual, ou seja, cada um resolver que tem direito a qualquer tipo de tratamento. Afinal, isso põe em risco todo o sistema, o crescimento exponencial da judicialização é algo que está tirando recursos da atenção primária para jogar em tratamentos muitas vezes experimentais, inadequados, caros. Considero que este vai ser um passo importante para nós conseguirmos evoluir no SUS.

O ICOS tem a convicção de que sem a melhora na organização do sistema e na distribuição de recursos não vamos conseguir atingir objetivo algum. Então, perguntando se a regionalização é uma questão prioritária? Sem dúvida, a regionalização está na estrutura do SUS e tem que ser priorizada.

 

RR: Em um país com tanta disparidade regional e desigualdades de todas as formas, como fazer o sistema de saúde ser mais eficaz e ótimo?

 

GC: Não conseguimos dar continuidade à nossa agenda de saúde porque o SUS é um problema de Estado e não de governo. Às vezes, cada ministro que entra cria a sua agenda, o que vai segmentando as ações. Os programas começam e depois não são mais priorizados. Precisamos é de uma agenda suprapartidária com o objetivo de trabalhar para a organização do SUS, independente do governo e do partido que esteja atuando, uma agenda contínua de implantação do SUS e que possa ir discutindo as melhorias e corrigindo os eventuais problemas do sistema. O Brasil é grande, o SUS é um sistema muito amplo, difícil de ser implantado. Mais difícil ainda quando governos vão propondo e descontinuando programas. A saúde e a educação devem trabalhar paralelamente à política.

 

RR: Construir uma agenda de concertação nacional neste momento parece algo impensável. O senhor concorda?

 

GC: Talvez tudo continue igual ou talvez consigamos implantar algo diferente. Acho que o ICOS precisa reunir setores de interesse muito divergentes, como operadoras de saúde, hospitais, indústria. Creio ser um bom momento para defender uma agenda construtiva e mostrar que, juntos, vamos conseguir melhorar o acesso à saúde. O país inteiro sente que é preciso encontrar uma saída pelo desenvolvimento ou permaneceremos nesse desenvolvimento médio, de uma população de renda média que nunca vai conseguir erradicar os problemas de pobreza, educação e acesso à saúde. Nós não temos a solução, nós queremos discutir em conjunto propostas que possam trazer melhorias de médio e longo prazo.

 

RR: O ICOS lançou um documento intitulado “Agenda Prioritária“, disponível no site do Instituto. Lá é citada a necessidade de “ondas de reestruturação, modernização e eficiência na saúde”. Como avançar nessa proposta de modo a dar conta de um país que tem doentes com males dos séculos XIX, XX e XXI?

 

GC: Isso é possível. Na saúde nós sempre colocamos a questão da falta de financiamento como o grande obstáculo. De fato, a nossa saúde tem um financiamento insuficiente, principalmente para a população que só tem acesso ao SUS público. Mas a outra grande questão é sobre como podemos melhorar esses recursos existentes, como melhorar a produtividade dos recursos insuficientes. O Hospital das Clínicas, da Universidade de São Paulo (USP), é um exemplo, porque trabalha com o mesmo orçamento desde 2013. O orçamento não evoluiu por causa da crise econômica. O Hospital das Clínicas há anos se preocupa em melhorar a sua gestão e tem conseguido manter o atendimento do hospital e do Instituto do Câncer nos mesmos padrões de qualidade e com o mesmo orçamento.

 

RR: Com o mesmo orçamento?

 

GC: Sim. Melhorando as compras, negociando melhor, otimizando recursos em setores prioritários. Ou seja, o que é prioritário para o HC? Atendimento de alta complexidade? Então vamos concentrar os recursos nas UTIs, em cirurgias de alta complexidade. Vamos tentar fazer com que a baixa complexidade seja atendida fora do hospital, acreditando que cada paciente do HC, mesmo tendo baixa complexidade, vai acabar custando como paciente de alta complexidade. Um paciente com dor de cabeça que entra no HC pode ser só uma dor de cabeça, mas ele vai fazer ressonância do crânio para saber se ele tem um tumor no cérebro, que é um conceito de alta complexidade.

Então, à medida que nós desprezamos o atendimento, dificultamos que o paciente de baixa complexidade seja atendido na Unidade Básica de Saúde (UBS). Também é preciso trabalhar por Unidades Básicas de Saúde mais resolutivas e fazendo com que o HC só atenda Alta Complexidade, isso vai fazer os recursos sejam mais bem utilizados.

Cinco anos atrás, o HC fechou o Pronto Socorro para o acesso de rua. O PS passou a atender só os casos referenciados de média e alta complexidade. Isso melhorou muito a eficiência. O custo continua igual, os pacientes graves que muitas vezes não conseguiam atendimento passaram a ser atendidos. Isso mostra que uma melhor organização ajuda no funcionamento do sistema e melhora a produtividade. Uma reforma ou uma reorganização institucional melhora a produtividade sem aumentar custos. É uma maneira de repensar a gestão.

 

RR: Você está falando de reorganização do modelo de atendimento, de governança. Enfim, quem puxaria essa organização na composição federativa atual? Quem tem a força?

 

GC: Existe uma relação direta entre União e município que acabou sendo gerada por interesses políticos. Enquanto misturar política partidária com o SUS não vai funcionar. Nós temos que separar. Na educação você tem o mesmo problema. Nós temos que separar. O SUS tem de ser profissionalizado, ter metas. Os programas não podem ser modificados de acordo com quem estiver no governo municipal, estadual ou federal. Isso só desorganiza, desperdiça recursos. Incham-se algumas estruturas e outras não recebem os recursos adequados. Realmente eu acho que a organização do sistema, a relação federação, estados e municípios tem de ser aprimorada. Há regiões em que estados e municípios têm a mesma atribuição. Em outras, nem estado, nem município atendem as necessidades dos cidadãos. A questão da organização é fundamental para qualificar gestores, porque a base dos nossos problemas ainda está na educação, na falta de gente qualificada, não só atendendo paciente, mas operando o sistema.

 

RR: A integração com outras áreas de governos ou entre governos é um caminho sem volta para o sucesso de ações e projetos na área da saúde?

 

GC: Isso é fundamental e hoje isso fica muito mais fácil com as técnicas de comunicação digital que temos. É tudo muito mais barato do que 10, 20 anos atrás. Essa é uma questão prioritária. Enquanto nós não integrarmos os diversos sistemas de saúde, vamos continuar tendo “35 mil” SUS funcionando de forma independente no país, com ações superpostas e recursos desperdiçados.

 

RR: Como o setor privado deve aparecer na discussão da saúde no Brasil?

 

GC: Eu acho que a relação de parceria que deve ser ampliada. Por exemplo, pode contribuir de forma importante na melhoria da gestão de saúde como as experiências das organizações sociais têm mostrado. Diversas Instituições com boas práticas e processos em saúde têm ajudado o Estado a fazer a gestão de unidades. Uma das grandes dificuldades do país é a qualificação de recursos humanos, em saúde. Isso é crítico, e o setor privado pode ajudar a qualificar profissionais. Com as indústrias, pode-se estabelecer parcerias, por exemplo, de medicamentos que forem considerados essenciais para a incorporação no SUS. Nós sabemos das dificuldade do Estado em absorver novos custos ou em ampliar esse acesso para negociação, permitindo que esses medicamentos possam chegar com custos controlados. Um medicamento que é judicializado chega a custar 10 vezes mais do que se fosse comprado pelo Estado dentro de uma licitação normal. Nós poderíamos com estas parcerias, com indústrias, hospitais, gestão e qualificação de recursos humanos, melhorar muito a eficiência, reduzir o custo e fazer com que os recursos de saúde tivessem um destino muito mais adequado.

 

RR: É possível pensar em atuações para o setor privado de modo que consiga aliviar ou minorar pressões sobre o sistema público de saúde em algumas áreas?

 

GC: O setor privado tem que realmente agir complementando as ações do setor público. As experiências dos Ambulatórios Médicos de Especialidades (AMES), no Estado de São Paulo, são um exemplo. Quando se percebeu que um dos gargalos do atendimento era o especialista, foram criadas os AMES regionais, com o objetivo de fazer com que se criassem entre os hospitais de alta complexidade do Estado e as prefeituras que não tinham como financiar especialistas estruturas onde os especialistas pudessem melhorar esse gargalo. A gestão dos AMES, até pela impossibilidade de contratar médicos pelo estado em larga escala, foi entregue a organizações sociais. Devo dizer que com os AMES, que hoje devem ser por volta de 50 no Estado, o atendimento melhorou. Resolveu? Não. Talvez a distribuição regional desses AMES ainda não esteja completa por falta de recursos. São financiados totalmente pelo Estado. Enfim, esse é um caso de uma colaboração entre o setor público com privado.

 

RR: O SUS deve ser um propulsor para o setor privado se constituir como uma peça importante do desenvolvimento nacional?

 

GC: Isso é essencial. Se o SUS não utilizar o setor privado para resolver os grandes problemas de acesso da população, em muitas regiões o paciente vai continuar sendo mal atendido. Nós temos que caminhar numa fusão desses dois sistemas onde possa haver um interesse comum: como atender adequadamente a população.

É claro que alguns pacientes vão poder ser atendidos numa determinada rede e outros pacientes em outra rede e algumas desigualdades existirão, porque, infelizmente, nós não conseguiremos chegar em um sistema ideal, pelo menos a médio prazo. Mas essa colaboração pode ajudar a diminuir essas desigualdades e aumentar a eficiência do setor. Mas que essa aproximação aconteça sem preconceitos.

Com o envelhecimento da população, dentro do modelo atual, boa parte população idosa quando se aposentar perderá o seguro privado e vai ter que ser atendida pelo setor público. Não podemos ter uma população idosa desassistida por falta de um plano de saúde, mas o setor público vai ficar ainda mais sobrecarregado do que já está. Isso não é problema do setor privado ou do setor público, é um problema do país. É uma realidade que todos nós vamos enfrentar. Nós já vemos um caos na saúde agora, imagina daqui a 20 anos, 30 anos quando a inversão da nossa pirâmide etária populacional será um fato. É fundamental que exista uma negociação entre setor público e setor privado sem preconceitos.