Na primeira mesa do Seminário Nacional sobre Regionalização da Saúde e Governança Regional, realizada em 8 de maio de 2025, foram apresentadas experiências estaduais do Pará e do Rio Grande do Norte. A mesa reuniu José Raimundo Moraes, secretário municipal de Curralinho e diretor de populações ribeirinhas e isoladas do COSEMS-Pará, e Douglas Ferreira, da Diretoria de Planejamento da Secretaria Estadual de Saúde Pública do Rio Grande do Norte (SESAP). A escuta dessas duas regiões revelou com clareza os desafios estruturais e as estratégias políticas adotadas por contextos tão distintos quanto complementares.
José Raimundo iniciou sua fala com uma evocação territorial contundente: o Marajó, arquipélago amazônico onde nasceu, vive e trabalha, é ao mesmo tempo símbolo da riqueza ecológica brasileira e da pobreza histórica institucional. Representando as populações ribeirinhas e isoladas do COSEMS-Pará, ele descreveu o cenário de fragmentação dos serviços, precariedade logística e desigualdade de infraestrutura como elementos centrais que dificultam a efetivação da regionalização no estado. Com 144 municípios distribuídos em uma área de dimensões continentais, o Pará abriga realidades díspares: regiões mineradoras e industrializadas convivem com municípios de baixo Índice de Desenvolvimento Humano e sem acesso regular a serviços básicos de saúde.
O histórico institucional relatado por José Raimundo revela que a regionalização no Pará passou por diversas reconfigurações – de 13 regionais administrativas originais até a atual conformação com quatro macro-regiões.
Embora haja 27 hospitais regionais instalados, a distribuição desigual dos serviços e a ausência de perfis assistenciais coerentes com as necessidades locais ainda resultam em fluxos concentrados para a capital.
José Raimundo Moraes
A governança ribeirinha enfrenta também as dificuldades práticas do deslocamento: a maior parte do território depende de rios para transporte, o que inviabiliza serviços padronizados como o SAMU. Iniciativas locais, como o resgate fluvial por meio de pequenas embarcações adaptadas, não são reconhecidas ou regulamentadas pelo Ministério da Saúde, gerando um impasse contínuo entre inovação territorial e rigidez normativa.
Douglas Ferreira, por sua vez, trouxe a experiência do Rio Grande do Norte, estado nordestino com 167 municípios e uma estrutura mais adensada em termos de acessibilidade e presença de equipamentos de saúde. Ainda assim, os desafios relatados são análogos em muitos aspectos: rotatividade de gestores municipais, fragilidade das comissões intergestores regionais (CIRs), dificuldade de consolidar planos de saúde como ferramentas de planejamento e a ausência de processos sistemáticos de monitoramento e avaliação de políticas pactuadas.
O relato potiguar destacou a trajetória do estado desde a tentativa de implantação do COAP (Contrato Organizativo da Ação Pública) em 2013 até os desdobramentos recentes do Planejamento Regional Integrado (PRI), coordenado com apoio do PROADI-SUS. Com duas macro-regiões formalizadas e discussões para a criação de uma terceira, o Rio Grande do Norte busca consolidar estratégias de regionalização ancoradas em análises de situação de saúde, priorização sanitária, e formação de núcleos técnicos nos territórios. A utilização do sistema RegulaRN, desenvolvido pelo Laboratório de Inovação em Saúde da UFRN, foi apresentada como exemplo de articulação entre tecnologia, transparência e gestão da regulação.
Um dos pontos altos da fala de Douglas foi a valorização da participação social e da integração institucional. O processo de regionalização no Rio Grande do Norte envolveu não apenas técnicos estaduais e municipais, mas também conselheiros de saúde, representantes da SEMES e articuladores territoriais. As oficinas macro-regionais se tornaram espaços de escuta e construção coletiva, com ênfase na linha de cuidado materno-infantil. O estado também avançou na formação de consórcios interfederativos, ainda incipientes, mas estratégicos para a gestão compartilhada de equipamentos como maternidades e policlínicas.
As intervenções de José Raimundo e Douglas, cada qual ancorada em seu território, convergiram em pontos fundamentais: regionalizar é enfrentar desigualdades com soluções ajustadas ao contexto; é romper com a lógica da fragmentação para construir redes sólidas e operantes; é integrar gestores, conselhos, movimentos sociais e usuários em instâncias decisórias contínuas. Ambos os relatos também evidenciaram que os entraves não estão apenas na ausência de recursos, mas na dificuldade de fazer valer os instrumentos já pactuados – um desafio que é técnico, político e institucional.
Ao dar visibilidade a essas vozes do Pará e do Rio Grande do Norte, a mesa 2 do seminário reafirmou que a regionalização do SUS não pode ser apenas um projeto normativo. Ela exige escuta profunda dos territórios, compromisso federativo efetivo e flexibilidade para acolher formas distintas de fazer política pública em saúde. A governança regional, nesse contexto, é menos uma estrutura estática e mais um campo permanente de negociação, disputa e reinvenção da democracia sanitária brasileira.