Por Davi Carvalho
A relação entre políticas de austeridade econômica e saúde mental tornou-se um dos temas centrais do debate público e acadêmico na década atual. Em meio a crises econômicas globais, pandemias e mudanças estruturais nos sistemas de proteção social, o impacto de cortes orçamentários sobre a saúde coletiva e os direitos humanos revela-se multifacetado, atravessando fronteiras, classes sociais e gerações. Este texto examina, de forma aprofundada e analítica, como o avanço de agendas neoliberais e a retração do Estado social afetam o bem-estar psíquico, a equidade e a cidadania, com foco especial no contexto brasileiro e diálogo com experiências internacionais.
A austeridade, entendida como a contenção deliberada do gasto público sob a justificativa de equilíbrio fiscal, não é um fenômeno neutro. No Brasil, sua adoção a partir de 2016, com a Emenda Constitucional 95, inaugurou um ciclo de restrição orçamentária que atingiu em cheio áreas sensíveis como saúde, educação e assistência social. O discurso de inevitabilidade técnica, frequentemente mobilizado para legitimar cortes, esconde escolhas políticas que privilegiam interesses de setores econômicos dominantes, mantendo intactos privilégios de grupos abastados enquanto penaliza a maioria da população.
O efeito regressivo dessas medidas é evidente: a redução de investimentos em políticas públicas aprofunda desigualdades históricas, fragiliza redes de proteção social e compromete o acesso a direitos fundamentais. A austeridade, ao contrário do que apregoam seus defensores, não impulsiona o crescimento econômico sustentável, mas desencadeia ciclos de retração, desemprego e precarização, com consequências diretas sobre a saúde mental e o tecido social.
Saúde mental em tempos de crise: Brasil sob ataque
No campo da saúde mental, os retrocessos são notórios. A política nacional, que desde a década de 1990 avançava sob os princípios da reforma psiquiátrica e da desinstitucionalização, passou a sofrer ataques sistemáticos. O subfinanciamento crônico da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), agravado por cortes e desmonte institucional, resultou na revalorização de modelos manicomiais e na ampliação de comunidades terapêuticas de caráter asilar e religioso, frequentemente marcadas por violações de direitos humanos.
A pandemia de Covid-19 exacerbou esse cenário. O Brasil, já fragilizado por anos de austeridade, viu crescer a demanda por serviços de saúde mental em meio a uma crise sanitária sem precedentes. O sofrimento psíquico, impulsionado por desemprego, insegurança alimentar, luto coletivo e isolamento social, encontrou um sistema público debilitado, incapaz de responder de forma equitativa e universal.
Fragmentação, coerção e abandono: o caso britânico
A experiência do Reino Unido, epicentro de políticas de austeridade desde a crise financeira de 2008, ilustra tendências que se repetem em outros contextos. O corte de recursos para serviços comunitários de saúde mental levou ao aumento de internações involuntárias, à fragmentação do atendimento e ao abandono de pacientes em situação de vulnerabilidade. Estudos recentes apontam para o crescimento da coerção institucional, a condicionalidade no acesso a tratamentos e a existência de uma população “invisível” – doentes demais para o mercado de trabalho, mas considerados saudáveis demais para receber cuidados especializados.
O aumento das desigualdades regionais e sociais é perceptível: áreas mais pobres e urbanas concentram tanto o maior gasto per capita quanto as maiores taxas de cortes, evidenciando a complexidade das dinâmicas locais de austeridade. O modelo britânico revela ainda a limitação de respostas baseadas apenas em incremento orçamentário, sem revisão estrutural das práticas e dos critérios de acesso.
Recessão, desemprego e sofrimento psíquico
A literatura internacional é consistente ao demonstrar a correlação entre crises econômicas, desemprego e agravamento de quadros de depressão, ansiedade, autolesão e suicídio. Revisões sistemáticas apontam que períodos de recessão intensificam fatores de risco – como endividamento, perda de status socioeconômico e insegurança no trabalho – e enfraquecem fatores protetivos, como redes de apoio e políticas de bem-estar.
O aumento do uso de medicamentos psicotrópicos, das internações por transtornos mentais e da procura por serviços de emergência psiquiátrica são indicadores recorrentes em países que adotaram políticas de austeridade. No entanto, paradoxalmente, a retração orçamentária também aprofunda as barreiras de acesso, ampliando o chamado “gap de tratamento” – a distância entre quem precisa e quem efetivamente recebe cuidados.
Mulheres, jovens, imigrantes e minorias raciais apresentam maior vulnerabilidade, tanto pelo impacto direto das crises quanto pelas desigualdades estruturais que limitam o acesso a serviços e a recursos de enfrentamento. O estigma associado à busca por ajuda, agravado em contextos de retração do Estado, contribui para o aumento do sofrimento silencioso e não assistido.
O retorno das velhas soluções
A pandemia de Covid-19 trouxe à tona a insuficiência dos sistemas de saúde pública e a necessidade de respostas coordenadas e solidárias. Contudo, projeções recentes do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial indicam que, a partir de 2024, quase metade dos países de baixa e média renda enfrentará nova onda de austeridade, com cortes superiores aos níveis da década anterior.
O principal motor desse movimento é o aumento do serviço da dívida externa ou interna, agravado pela alta dos juros internacionais e pela volatilidade dos preços de commodities. O resultado é a compressão dos orçamentos nacionais, com gastos em saúde estagnados ou em queda, e a transferência do ônus para as famílias, que se veem obrigadas a recorrer ao setor privado ou a postergar tratamentos essenciais.
A experiência histórica demonstra que tais ciclos de ajuste fiscal produzem deterioração dos indicadores de saúde, ampliação das desigualdades e retrocessos em conquistas civilizatórias. A promessa de universalização do acesso à saúde e educação, consagrada nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, fica cada vez mais distante diante da prioridade conferida ao pagamento de dívidas e à manutenção de privilégios financeiros.
Resistências e alternativas
Apesar do cenário adverso, múltiplas formas de resistência emergem em diferentes contextos. No Brasil, movimentos antimanicomiais, coletivos de usuários e familiares, entidades profissionais e pesquisadores têm denunciado retrocessos e articulado frentes amplas em defesa da saúde mental pública, inclusiva e baseada em direitos.
A mobilização social tem sido fundamental para barrar tentativas de revogação de marcos legais da reforma psiquiátrica, para denunciar práticas coercitivas e para reivindicar transparência e participação no desenho de políticas públicas. A experiência recente mostra que a defesa da saúde mental não pode ser dissociada da luta por democracia, justiça fiscal e fortalecimento do Estado de bem-estar.
No plano internacional, recomenda-se a adoção de políticas tributárias progressivas, com taxação de grandes fortunas e revisão de benefícios fiscais para os mais ricos, como forma de ampliar o espaço fiscal para investimentos sociais. A integração de serviços de saúde mental com redes comunitárias, a valorização do cuidado em liberdade e a promoção de estratégias de baixo custo, como intervenções digitais e apoio psicossocial por pares, são apontadas como alternativas viáveis para ampliar o acesso e reduzir danos em contextos de restrição orçamentária.
Desafios éticos e perspectivas futuras
A austeridade, ao limitar o uso máximo de recursos disponíveis para garantir direitos, coloca em xeque compromissos constitucionais e tratados internacionais de direitos humanos. O retrocesso em áreas como saúde, educação, moradia e segurança alimentar representa não apenas uma falha de gestão, mas uma violação de princípios éticos fundamentais.
O desafio colocado para gestores, profissionais e sociedade é duplo: resistir à naturalização da escassez como horizonte inevitável e construir alternativas que combinem responsabilidade fiscal com compromisso social. A experiência brasileira recente, marcada por avanços parciais em meio a um Congresso hostil ao fortalecimento de políticas sociais, mostra que é possível – mas díficil – promover justiça fiscal, reconstruir políticas públicas e preservar a coesão social, mesmo que haja vontade política do executivo e mobilização coletiva.
A análise dos impactos da austeridade sobre a saúde mental, no Brasil e no mundo, evidencia que escolhas econômicas têm consequências profundas sobre o bem-estar, a equidade e a democracia. A defesa de sistemas universais, públicos e integrados de saúde mental, articulados com políticas de proteção social e direitos humanos, é condição indispensável para enfrentar os desafios do presente e construir sociedades mais justas e solidárias.
O caminho para além da austeridade exige coragem para enfrentar privilégios, criatividade para desenhar políticas inovadoras e compromisso ético com a dignidade humana. Em tempos de incerteza, a aposta na vida, na solidariedade e na justiça social deve ser o norte de toda ação pública.
Filmografia
Maid (Netflix)
A série acompanha Alex, uma jovem mãe que foge de um relacionamento abusivo e enfrenta a precariedade do trabalho doméstico nos EUA. A narrativa explora os impactos da pobreza, da burocracia estatal e da falta de apoio social sobre a saúde mental, mostrando o ciclo de vulnerabilidade e exaustão enfrentado por quem depende de empregos informais. A construção dos personagens é sensível e realista, destacando as barreiras institucionais para quem busca reconstruir a vida em meio à desigualdade. A direção aposta em uma estética intimista, reforçando o peso emocional das escolhas e das perdas cotidianas.
Eu, Daniel Blake (Prime Video)
O filme retrata a luta de um trabalhador britânico de meia-idade, afastado por problemas de saúde, para acessar benefícios sociais em meio à austeridade. O roteiro denuncia a desumanização dos sistemas de assistência, expondo a burocracia como instrumento de exclusão. A relação entre Daniel e uma mãe solteira evidencia solidariedade e resistência diante do abandono estatal. A direção de Ken Loach é direta e sóbria, enfatizando o cotidiano sufocante da pobreza e os efeitos psicológicos do desamparo. O resultado é um retrato contundente das consequências sociais e mentais das políticas de corte.
Sorry We Missed You (Prime Video)
Neste drama, uma família britânica tenta sobreviver em meio à precarização do trabalho por aplicativos. O protagonista, motorista de entregas, enfrenta jornadas exaustivas e ausência de direitos, enquanto a esposa lida com a sobrecarga emocional como cuidadora domiciliar. O filme evidencia como a lógica de austeridade e flexibilização trabalhista impacta o bem-estar, gerando ansiedade, conflitos familiares e sensação de impotência. A narrativa é crua e direta, mostrando a corrosão dos vínculos afetivos e sociais diante da insegurança econômica permanente.
The Florida Project (Star+)
A história se passa nos arredores da Disney World, onde uma mãe solteira e sua filha vivem em um motel barato, à margem do sonho americano. O filme retrata a infância em situação de pobreza extrema, abordando os efeitos da exclusão social e da instabilidade financeira sobre a saúde mental de adultos e crianças. A direção utiliza cores vibrantes e planos abertos para contrastar a fantasia turística com a dura realidade dos personagens. O roteiro evita sentimentalismos, apostando em uma observação atenta e honesta das estratégias de sobrevivência e resiliência.
Dopesick (Star+)
A minissérie investiga a crise dos opioides nos EUA, mostrando como a busca por alívio diante de condições econômicas adversas e falta de perspectivas alimenta epidemias de dependência. O roteiro articula múltiplos pontos de vista — médicos, pacientes, advogados e executivos — para revelar como políticas de saúde negligentes e interesses corporativos aprofundam o sofrimento psíquico em comunidades vulneráveis. A produção destaca o impacto devastador da desigualdade e da ausência de políticas públicas robustas sobre a saúde mental coletiva.
Referências
- “Saúde mental no Brasil em tempos de pandemia e neoliberalismo: retrocessos e resistências“, História, Ciências, Saúde – Manguinhos, 2024.
- Silva M, Resurrección DM, Antunes A, Frasquilho D, Cardoso G. “Impact of economic crises on mental health care: a systematic review.” Epidemiology and Psychiatric Sciences. 2020.
- Muhammad Amiruddin Azizi et al. “From Wallets to Well-Being: Unveiling the Impact of Escalating Living Costs on Mental Health among Parents in Malaysia.” International Journal of Academic Research in Business and Social Sciences, 2024.
- Guerra, O.; Agyapong, V.I.O.; Nkire, N. “A Qualitative Scoping Review of the Impacts of Economic Recessions on Mental Health: Implications for Practice and Policy.” Int. J. Environ. Res. Public Health, 2022.
- Guerra, O.; Eboreime, E. “The Impact of Economic Recessions on Depression, Anxiety, and Trauma-Related Disorders and Illness Outcomes—A Scoping Review.” Behav. Sci., 2021.
- Stubbs T, Kentikelenis A, Gabor D, Ghosh J, McKee M. “The return of austerity imperils global health.” BMJ Global Health, 2023.
- Ed Kiely. “Between coercion, conditionality and abandonment: A descriptive analysis of English mental health spending and provision under austerity.” Journal of Critical Public Health, 2024.
