O Censo Nacional das Unidades Básicas de Saúde (UBS) oferece um retrato inédito e abrangente da Atenção Primária à Saúde (APS) no Brasil. Realizado pelo Ministério da Saúde, em parceria com a Rede de Pesquisa em Atenção Primária à Saúde da Abrasco, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) e a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), o levantamento alcançou quase 45 mil UBS do Sistema Único de Saúde (SUS). Trata-se do maior estudo já conduzido sobre a infraestrutura, as equipes e os serviços dessa porta de entrada preferencial do sistema.
O trabalho, viabilizado pela mobilização de milhares de colaboradores espalhados pelo território nacional, gerou um banco de dados que vai muito além de estatísticas. O Censo Nacional das UBS 2024 não se limita a medir o presente: ele lança luz sobre as desigualdades históricas da Atenção Primária à Saúde (APS), identifica onde se avançou e aponta, com clareza, onde o SUS precisará concentrar esforços nos próximos anos.
Historicamente, a narrativa sobre a APS no Brasil enfatizou a distância entre as regiões Sul e Sudeste, mais estruturadas, e o Nordeste, marcado por fragilidades na rede de atenção. O censo, no entanto, mostra que essa assimetria está em mutação. Na cobertura por equipes de Saúde da Família — considerada um dos pilares do modelo brasileiro de APS — a média nacional é de 88% das UBS, mas o Nordeste atinge 94%, superando, em alguns aspectos, padrões de regiões tradicionalmente mais favorecidas.
Essa inflexão representa um avanço concreto na equidade em saúde. Significa que, em municípios antes identificados pela falta crônica de médicos e infraestrutura precária, o acesso ao cuidado primário está mais próximo de se equiparar ao de outras partes do país. É um movimento que não elimina desigualdades, mas mostra que, com investimento e gestão articulada, é possível reduzi-las.
O trabalho em equipe
Um dos números que ganhou destaque na cobertura do censo é o de que 59% das UBS funcionam com apenas um médico. Para Luiz Augusto Facchini, professor da Universidade Federal de Pelotas, ex-presidente da Abrasco e um dos coordenadores do estudo, essa leitura isolada distorce a realidade. “O médico nunca trabalha sozinho”, lembra em entrevista à Abrasco.
A atuação na APS é, por definição, multiprofissional: envolve enfermeiros, dentistas, técnicos, auxiliares e agentes comunitários de saúde, responsáveis por ações que vão da consulta clínica ao acompanhamento domiciliar e à vigilância no território.
Mais relevante que o número absoluto é o alcance da presença médica: mais de 96% das UBS contam com ao menos um profissional dessa categoria. Isso equivale a cerca de 54 a 55 mil médicos atuando regularmente na APS — o melhor desempenho do SUS em toda a sua história. Em paralelo, 42% das unidades já dispõem de equipes multiprofissionais (eMulti), reforçando a capacidade de oferecer um cuidado mais abrangente e integrado.
O censo revela que 85% das UBS funcionam em prédios próprios dos municípios, e boa parte deles tem desenho arquitetônico adequado às funções que desempenham. No entanto, a maioria dessas unidades é de pequeno porte. Há, contudo, um dado promissor: 70% possuem terreno disponível para ampliação. Essa informação, aparentemente técnica, tem implicações diretas para a política de expansão da APS, indicando que há espaço físico para crescer sem a necessidade de novas aquisições de terrenos — um fator que pode reduzir custos e acelerar obras.
Avanço expressivo, mas desigual

O salto no acesso à internet talvez seja um dos indicadores mais impressionantes da última década. Em 2012, apenas 45% das UBS tinham conexão à rede. Em 2024, o percentual alcançou 95%. É um avanço decisivo para a incorporação de tecnologias de saúde digital e para a integração dos sistemas de informação em saúde. Ainda assim, a qualidade da conexão é insuficiente em 30% das unidades, o que limita a plena utilização de prontuários eletrônicos, teleconsultas e outros recursos que dependem de banda larga estável.
A pesquisa também identificou lacunas no acesso a equipamentos de diagnóstico e monitoramento. O uso de oxímetros, espirômetros, aparelhos para exames oftalmológicos e auditivos, eletrocardiogramas portáteis e ultrassons ainda não é universal. Esses recursos, quando disponíveis, ampliam a resolutividade da APS, evitando deslocamentos desnecessários e reduzindo a sobrecarga dos serviços especializados.
Políticas orientadas por evidências
Ao reunir dados tão detalhados, o censo oferece ao Ministério da Saúde e aos gestores estaduais e municipais um instrumento estratégico para a tomada de decisão. É possível identificar, por exemplo, onde a infraestrutura é adequada, mas faltam profissionais; onde há terreno para expansão, mas não há projeto; ou onde a conectividade é a barreira principal para melhorar o atendimento.
Facchini destaca que essa base de dados permitirá estudos aprofundados sobre desigualdades e carências, cruzando informações do censo com outros bancos de dados de saúde e de proteção social. Isso abre caminho para ações mais direcionadas, capazes de responder às necessidades específicas de cada território.
O levantamento marca um ponto de inflexão na compreensão da Atenção Primária no Brasil. Mas números, por mais reveladores que sejam, ganham novas camadas quando acompanhados das histórias e reflexões de quem esteve no centro do processo. É o que Luiz Augusto Facchini compartilha na entrevista concedida à 4ª temporada do podcast A Saúde é Coletiva, da Abrasco, agora disponível para ser ouvida abaixo.
