Por Davi Carvalho

O segundo painel do Seminário Nacional de Consórcios Públicos e Regionalização do SUS, realizado na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, trouxe à tona discussões fundamentais sobre o papel dos consórcios públicos na governança regional em saúde. Promovido pelo Observatório do SUS da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/Fiocruz), em parceria com a Plataforma Região e Redes, o Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e o Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da ENSP/Fiocruz, o evento reuniu especialistas para debater como os consórcios podem fortalecer a gestão cooperativa e integrada do Sistema Único de Saúde (SUS).

O painel contou com quatro palestrantes: Luciana Dias de Lima, Maria da Conceição de Souza Rocha, Lisandro Lui e Luiz Eugênio Portela Fernandes de Souza. Cada um trouxe perspectivas distintas sobre os desafios e possibilidades dos consórcios públicos na promoção de uma governança regional eficaz.

Luciana Dias de Lima, vice-diretora de Pesquisa e Inovação da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, abriu o painel destacando a complexidade do tema. Ela chamou atenção para as múltiplas dimensões que envolvem a governança dos consórcios públicos, desde questões federativas até as interdependências entre diferentes setores e áreas da política de saúde.

“Os consórcios públicos de saúde operam em um país de dimensões continentais, populoso, diverso e extremamente desigual”, afirmou Luciana. “Essa realidade exige um olhar atento para os limites e possibilidades dessas associações.”

Luciana Dias de Lima, vice-diretora de Pesquisa e Inovação da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca

Ela também apresentou dados de sua pesquisa sobre os consórcios públicos intermunicipais de saúde, destacando que 50% dos consórcios no Brasil não coincidem com as regiões de saúde definidas pelo SUS. Essa fragmentação, segundo ela, gera tensões nos processos de governança regional. “Há uma necessidade urgente de articular melhor esses consórcios com as estruturas de governança do SUS, tanto no plano estadual quanto regional”, explicou.

Maria da Conceição de Souza Rocha, Secretária Municipal de Saúde do Rio de Janeiro e Presidente do Cosems-RJ, destacou a importância dos consórcios como instrumentos de organização regional, mas alertou para os obstáculos políticos que limitam seu potencial. Ela ressaltou que, no Rio de Janeiro, a ausência de uma política estadual clara para os consórcios resulta em descoordenação entre as instâncias de gestão. “Os planos estaduais de saúde sequer mencionam a palavra ‘consórcio público’, o que mostra uma desconexão entre o estado e as iniciativas regionais”, afirmou, apontando que municípios pequenos acabam arcando com custos de serviços especializados sem apoio estrutural.

Além disso, Maria da Conceição criticou a fragmentação do sistema de saúde no estado. “A estrutura organizacional é muito fragmentada; a atenção básica não conversa com a atenção especializada”, disse, enfatizando a necessidade de modelos que integrem os níveis de cuidado. Ela também mencionou que, mesmo com avanços em algumas regiões, como a criação de policlínicas, a falta de diálogo entre gestores estaduais e municipais prejudica a sustentabilidade dos consórcios.

A secretária executiva destacou ainda os riscos de terceirização e a dependência de recursos federais. “O financiamento do consórcio é uma questão candente. Sem apoio estadual, os municípios carregam o peso de custear serviços especializados”, explicou, reforçando que a sustentabilidade passa por uma maior articulação federativa e revisão de critérios de rateio. Sua fala evidenciou que, sem políticas integradas, os consórcios correm o risco de reproduzir as mesmas desigualdades que buscam combater.

Luís Eugênio Portela de Souza, diretor do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA), apresentou uma análise sobre a experiência dos consórcios verticais na Bahia. Ele destacou que essas associações têm sido fundamentais para a estruturação das redes regionais de saúde.

“A ideia de região está associada à ideia de redes. Os municípios, especialmente os menores, não têm capacidade para oferecer todos os serviços necessários à sua população. A região é a forma de viabilizar essas redes integradas.”

Luís Eugênio Portela de Souza, diretor do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Ele também apontou desafios significativos, como a alta rotatividade de profissionais nas policlínicas e a insuficiente articulação com a atenção primária à saúde. “Muitas vezes, a atenção básica poderia resolver problemas que acabam sendo encaminhados para a atenção especializada”, afirmou.

Lisandro concluiu sua apresentação destacando a importância de inserir o processo de regionalização da saúde no desenvolvimento regional mais amplo. “Os consórcios podem ser instrumentos poderosos para promover essa integração”, disse.

Lisandro Lui, professor da Escola de Políticas Públicas e Governo da Fundação Getúlio Vargas (FGV), abordou a trajetória dos consórcios públicos de saúde no Rio Grande do Sul, destacando que eles surgiram antes mesmo da regulamentação federal de 2005. “Os consórcios gaúchos foram criados para superar carências municipais, especialmente após a fragmentação territorial que elevou o número de municípios de 200 para quase 500”, explicou. Sua análise revelou que a ausência de coordenação estadual e a dependência de lideranças locais geraram modelos heterogêneos, com municípios participando de múltiplos consórcios ou nenhum, evidenciando uma “ausência de política estadual clara”.

Ele também criticou a reprodução de práticas que limitam o potencial dos consórcios. “No Rio Grande do Sul, os planos estaduais de saúde sequer mencionam os consórcios, o que reforça a fragmentação e a sobrecarga municipal”, afirmou. Lui destacou que, sem cofinanciamento estadual consistente, os consórcios enfrentam instabilidade financeira, além de desafios técnicos como a manutenção de equipamentos caros e a regulação subjetiva de serviços. “A regulação muitas vezes é feita por funcionários administrativos sem critérios técnicos, gerando filas desorganizadas”, alertou.

Por fim, Lisandro defendeu que os consórcios devem transcender o papel de meros executores de políticas federais. “Eles precisam ser espaços de inovação e autonomia regional, integrados a agendas de desenvolvimento que incluam infraestrutura e economia”, disse. Comparando experiências de estados como Ceará e Bahia, onde o poder público estadual atua como indutor, ele ressaltou: “Sem articulação federativa e revisão do modelo curativista, os consórcios correm o risco de reproduzir as iniquidades que buscam combater”.

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