A dívida pública global alcançou a marca de 102 trilhões de dólares em 2024, um aumento de 5 trilhões em relação ao ano anterior, conforme aponta o relatório “A world of debt: it is time for reform”, divulgado pela Conferência das das Nacoões Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD). Embora o endividamento seja um fenômeno mundial, seu peso recai de maneira desproporcional sobre os países em desenvolvimento, onde as obrigações financeiras crescem em um ritmo duas vezes mais acelerado que o das economias desenvolvidas.
Essa assimetria se torna mais evidente ao se constatar que os países em desenvolvimento, embora concentrem 31% da dívida pública global, são o lar de 83% da população mundial. O serviço dessa dívida desvia recursos que poderiam ser alocados em áreas críticas. O relatório aponta que os pagamentos de juros nessas nações atingiram 921 bilhões de dólares em 2024, um acréscimo de 10% sobre 2023.

Uma das causas centrais para o agravamento do quadro é a mudança no perfil dos credores. Desde 2010, a parcela da dívida pública externa devida a credores privados aumentou em todas as regiões, respondendo por 60% do total dos países em desenvolvimento em 2023. Essa dependência de capitais privados acarreta três desafios principais: volatilidade, com súbitas retiradas de recursos em momentos de crise; custos mais elevados, com taxas de juros de duas a quatro vezes maiores que as praticadas nos Estados Unidos; e maior complexidade para a reestruturação das dívidas. Como resultado, em 2023, os países em desenvolvimento registraram uma saída líquida de recursos de 25 bilhões de dólares, pois os pagamentos de serviço da dívida aos credores privados superaram os novos desembolsos.
O custo humano desse cenário é direto. Entre 2011 e 2023, o crescimento dos gastos com juros (84%) nos países em desenvolvimento superou expressivamente o aumento dos investimentos em saúde (77%) e educação (52%). Na África, a situação é particularmente grave: o gasto médio per capita com juros (70 dólares) foi superior ao destinado à educação (63 dólares) e à saúde (44 dólares). Atualmente, 3,4 bilhões de pessoas vivem em nações onde o serviço da dívida consome mais recursos públicos que os orçamentos de saúde ou educação.
Diante deste quadro, a UNCTAD defende uma reforma urgente da arquitetura financeira internacional, um tema central na 4ª Conferência Internacional sobre Financiamento para o Desenvolvimento, realizada em Sevilha. As propostas incluem tornar o sistema mais inclusivo, aumentar a liquidez em tempos de crise e criar um mecanismo eficaz para a reestruturação de dívidas que supere as deficiências do atual G20 Common Framework. A organização também preconiza a ampliação do financiamento concessional e da assistência técnica para apoiar os países a gerirem os altos custos do endividamento.
E o Brasil?
O relatório da UNCTAD situa o Brasil como detentor da maior dívida pública da América Latina, estimada em 1,895 trilhão de dólares para 2025. A análise dos dados específicos do país, disponibilizados pela própria organização, revela uma trajetória fiscal em que o serviço da dívida consistentemente consome uma parcela maior das receitas do governo do que as áreas de saúde e educação.
A comparação anual dos gastos públicos como porcentagem da receita do governo ilustra essa dinâmica. Em 2018, as despesas com juros representavam 12,2% da receita, um patamar já superior aos 10,7% destinados à saúde e aos 8% alocados para a educação. No ano seguinte, em 2019, houve uma leve queda no serviço da dívida, para 11,5%, enquanto saúde (10,5%) e educação (7,9%) mantiveram-se em níveis próximos.
O ano de 2020, marcado pelo início da pandemia, registrou uma forte elevação nos gastos com juros, que saltaram para 13,8% da receita. Em contrapartida, os investimentos em saúde, apesar da crise sanitária, corresponderam a 11,2%, e os de educação, a 7,5%. A divergência se aprofundou em 2021, quando a despesa com juros alcançou 15,1%, o pico do período analisado, ao passo que saúde e educação representaram 10,2% e 7,1% da receita, respectivamente.
Nos anos subsequentes, embora o gasto com juros tenha recuado em relação ao pico de 2021, permaneceu em um nível elevado e sistematicamente acima dos gastos sociais. Em 2022, os juros consumiram 13,2% da receita, contra 10,4% da saúde e 7,2% da educação. Para 2023, os números foram de 13,3% para juros, 10,6% para saúde e 7,4% para educação. A projeção para 2024 indica a manutenção dessa estrutura, com o serviço da dívida respondendo por 13,5% das receitas governamentais, enquanto os gastos projetados para a saúde são de 10,8% e para a educação, de 7,6%.
Essa contínua priorização do pagamento de juros em detrimento de áreas sociais estratégicas reflete a pressão que o endividamento exerce sobre o orçamento brasileiro, limitando a capacidade de investimento do Estado e alinhando o país à tendência observada em grande parte do Sul Global.