Por Davi Carvalho

Houve um tempo em que a simples ideia de dar dinheiro às famílias pobres em troca de compromissos mínimos em saúde e educação parecia, para muitos, uma proposta ousada demais. Mas o Brasil ousou, e o Bolsa Família — lançado em 2004 — transformou-se, ao longo de duas décadas, não apenas em uma política social, mas em uma estratégia de saúde pública. Um estudo de pesquisadores do Instituto de Saúde Coletiva (ISC/UFBA) e outras universidades do Brasil e exterior, publicado no The Lancet Public Health, intitulado “Health effects of the Brazilian Conditional Cash Transfer programme over 20 years and projections to 2030: a retrospective analysis and modelling study” analisa os efeitos do programa nas taxas de mortalidade e hospitalização e projeta cenários para 2030.

Assinada por Daniella Medeiros Cavalcanti, José Alejandro Ordoñez e outros pesquisadores, a pesquisa usou dados de 3671 municípios brasileiros, entre 2000 e 2019, para avaliar o impacto do Bolsa Família sobre mortalidade e hospitalizações. Foi uma escolha metodológica fundamentada: esses municípios apresentavam dados confiáveis de registro civil, condição essencial para análises robustas. Segundo os autores, “esta consolidação metodológica é importante para reduzir qualquer possível viés devido a mudanças na qualidade do sistema de notificação de óbitos ao longo do período de estudo”.

As análises incluíram variáveis como a cobertura do programa — o percentual de famílias atendidas em relação ao total de elegíveis — e a adequação dos benefícios — o valor médio recebido por família. Isso permitiu estimar os chamados “efeitos dose-resposta” — em outras palavras, medir quanto mais vidas eram salvas ou hospitalizações evitadas à medida que a cobertura e a adequação aumentavam. “Consolidada, a cobertura do Bolsa Família apresentou uma razão de taxa de mortalidade de 0,824 (IC 95% 0,807–0,842)”, destaca o estudo, sinalizando uma redução significativa nas mortes.

Ao conjugar alta cobertura e alta adequação, o impacto foi ainda mais evidente: as taxas de hospitalização caíram em 22,5% e as de mortalidade em 27,7% em todas as faixas etárias. “Municípios com alta cobertura e alta adequação foram capazes de reduzir em 48% as hospitalizações de pessoas com mais de 70 anos”, aponta o artigo, enfatizando o efeito nos grupos mais vulneráveis.

Essas estatísticas, que podem parecer frias, representam mais de 713 mil mortes evitadas e 8,2 milhões de internações poupadas entre 2000 e 2019. “As análises mostram que a implementação nacional de um programa de transferência condicionada de renda em um país de baixa ou média renda pode contribuir fortemente para a redução de hospitalizações e mortes”, afirmam os pesquisadores, alinhando o Bolsa Família aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU.

Mas o estudo não se limitou ao passado. Usando modelos de microsimulação — técnica de projeção baseada em dados reais — os pesquisadores estimaram o que pode acontecer até 2030. Se o Brasil ampliar a cobertura e a adequação, poderá evitar mais de 680 mil mortes e 8 milhões de internações adicionais. Em contrapartida, cenários de retração ou austeridade fiscal, com cortes no programa, podem significar aumento da mortalidade e sobrecarga nos hospitais.

Um dos pontos mais relevantes é o detalhamento dos mecanismos que explicam esses efeitos. O impacto do Bolsa Família não se restringe ao dinheiro, mas inclui as condicionalidades — como manter as crianças na escola, vacinadas e acompanhadas na saúde —, que reforçam o vínculo das famílias com o Sistema Único de Saúde. “Os programas de transferência condicionada de renda podem também afetar a saúde por meio de fatores psicossociais, como a redução do estresse e da carga cognitiva, possibilitando decisões mais assertivas em saúde”, destaca o texto.

Para além dos beneficiários diretos, há efeitos indiretos que beneficiam toda a comunidade, fenômeno que os autores chamam de “spillover effects”. “Em municípios com alta cobertura, a transferência de recursos pode ter efeitos importantes no restante da comunidade, especialmente nas regiões mais pobres”, observam.

O estudo, fruto da colaboração entre universidades brasileiras e internacionais — como a Universidade Federal da Bahia, a Fiocruz e a Universidade de Barcelona — reforça a importância da integração de políticas sociais e de saúde. “O Bolsa Família não é apenas uma ferramenta de alívio imediato da pobreza, mas também uma estratégia poderosa de saúde pública”, afirma o artigo. Esse entendimento é especialmente relevante num contexto de crises interligadas — pandemia, mudanças climáticas e conflitos — que ampliam a pobreza e as desigualdades em saúde.

Ao comentar o impacto das condicionalidades de saúde do programa nos resultados de mortalidade infantil e hospitalizações em idosos, uma das coordenadoras da pesquisa, Daniella Medeiros Cavalcanti, explica: “As condicionalidades em saúde do Bolsa Família, como o acompanhamento do calendário vacinal e do crescimento e desenvolvimento infantil, têm impacto direto na redução da mortalidade infantil, ao fortalecer ações de prevenção e o vínculo com a atenção básica. Embora o programa não tenha condicionalidades voltadas diretamente à população idosa, nossos resultados sugerem efeitos indiretos importantes nesse grupo, com a redução de hospitalizações como consequência da transferência de renda, beneficiando a família como um todo.”

Créditos da imageThe Lancet Regional Health – Americas, vol 27, nov. 2023. “Cover image by Roberto Lima. A heartwarming scene in the favela of Rio de Janeiro, Brazil. Cover shows a child and their grandfather, radiating happiness as they make their way to a local health centre.”
 https://www.thelancet.com/journals/lanam/issue/vol27nonull/PIIS2667-193X(23)X0009-X

Quando questionada sobre o futuro do programa e os possíveis impactos de cenários de austeridade fiscal, Daniela é taxativa: “Cenários de austeridade fiscal representam um risco concreto à sustentabilidade de políticas sociais como o Bolsa Família. Reduções no financiamento ou na cobertura do programa podem comprometer os avanços obtidos nas últimas décadas em indicadores de saúde, educação e segurança alimentar.”

Nossos achados indicam que, caso o programa seja expandido em cobertura e valor dos benefícios, até 683 mil mortes e mais de 8 milhões de internações poderão ser evitadas até 2030.

Daniella Medeiros Cavalcanti

Embora o estudo aponte limitações — como a exclusão de municípios com dados de registro civil de baixa qualidade —, a robustez metodológica é reforçada por análises de sensibilidade que incluem diferentes cenários de cobertura e adequação. Foram realizados ajustes para eventos econômicos críticos, garantindo que os resultados não estivessem distorcidos por choques externos.

Ao final, o estudo deixa clara a mensagem: manter e expandir políticas como o Bolsa Família é uma escolha política que se reflete diretamente nas vidas salvas ou perdidas. Entre dados e vidas, entre estatísticas e histórias, o Brasil tem diante de si uma decisão que vai muito além de números. O futuro da saúde pública pode depender das escolhas feitas hoje.

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