O Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) lançou o documento “Financiamento da Saúde: propostas para um pacto federativo solidário“. O título poderia sugerir uma agenda técnica, mas o que se lê é uma crítica severa à regressão federativa em curso no país. Assinado por Blenda Leite Saturnino Pereira, Natalia Nunes Ferreira-Batista, Gustavo Andrey de Almeida Lopes Fernandes, Daniel Resende Faleiros e Antonio Carlos Rosa de Oliveira Junior, o texto oferece um diagnóstico preciso das distorções do financiamento da saúde no Brasil e propõe uma mudança de rota. Não é pouco. Em meio a um contexto de austeridade fiscal e esvaziamento do papel coordenador da União, o documento se insere como uma tentativa de reequilibrar os termos do pacto federativo pela via da saúde.
O texto parte de uma constatação incômoda: o Sistema Único de Saúde (SUS), embora constitucionalmente concebido como responsabilidade comum entre os entes da federação, opera sob uma dinâmica perversa de concentração de encargos nos níveis subnacionais. É nos estados e, sobretudo, nos municípios que recaem os custos crescentes da prestação de serviços de saúde. Os dados apresentados são eloquentes: os municípios respondem por mais de 31% dos gastos em saúde, mesmo sem dispor da capacidade arrecadatória da União. Em contrapartida, a participação federal no financiamento do SUS estagnou ou diminuiu nos últimos anos, mesmo diante do crescimento da demanda e da complexidade das ações de saúde.

Se a tendência histórica já era desfavorável, o Novo Regime Fiscal — em vigor desde 2023 — cristalizou as assimetrias. Os autores criticam a regra que limita o crescimento real das despesas federais, alertando para os riscos de institucionalizar o subfinanciamento. A crítica é clara: ao impor um teto para o gasto primário, o novo marco fiscal compromete a capacidade de resposta do SUS e corrói sua função redistributiva. É uma argumentação que ressoa além do campo sanitário e se inscreve no debate mais amplo sobre o papel do Estado no Brasil contemporâneo.
Mas o documento não se limita ao diagnóstico. O que o torna relevante é o caráter propositivo e a sofisticação com que articula dados empíricos, experiências de gestão e formulação institucional. O Conass propõe a reestruturação dos critérios de transferência federal, com base em necessidades regionais, indicadores de vulnerabilidade e capacidade instalada. Em outras palavras, a lógica redistributiva prevista na Constituição precisa deixar de ser princípio abstrato para se tornar política efetiva.
Outros pontos da proposta são igualmente relevantes: o fortalecimento das instâncias de pactuação interfederativa (como as comissões intergestores), a criação de um Fundo Nacional de Equidade em Saúde e a revisão do papel das emendas parlamentares no financiamento da saúde. Neste último caso, a crítica é direta: a fragmentação de recursos via emendas impositivas subverte o planejamento técnico e compromete a gestão regionalizada. Ao transformar o financiamento em moeda de barganha política, o Congresso Nacional dificulta o cumprimento das diretrizes nacionais pactuadas.
O documento também aposta na adoção de contratos organizativos regionais, nos quais financiamento, metas e responsabilidades seriam vinculados à organização de redes de atenção. Trata-se de uma tentativa de dar coerência institucional ao que hoje se apresenta como um sistema pulverizado e de racionalidade precária. O SUS, como estrutura de integração regional, depende dessa inteligência institucional.
Sob o pano de fundo, emerge a tese central do texto: é preciso recentralizar o financiamento da saúde, sem recentralizar a gestão. Isso significa recuperar a responsabilidade da União no financiamento das políticas sociais, sem tolher a autonomia dos estados e municípios. A proposta é uma recentralização solidária, baseada em planejamento, pactuação e critérios técnicos.
O documento do Conass contorna o vocabulário da urgência sem renunciar à firmeza. Ele não se rende ao catastrofismo, mas também não disfarça a gravidade do momento. É um chamado à responsabilidade federativa e à inteligência institucional. É também um convite para recolocar a saúde como eixo estruturante da democracia social brasileira.
