Na manhã de 27 de maio, o auditório do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA recebeu o painel “Federalismo e Governança na América do Norte”, que abriu o Seminário Internacional sobre governança em saúde. A mesa reuniu representantes do México, Canadá e Estados Unidos para discutir como a organização federativa influencia a formulação e a execução de políticas de saúde em cada país.
A mexicana Anahely Medrano Buenrostro, do Centro de Investigación en Ciencias de Información Geoespacial, abriu a sessão com uma exposição sobre a trajetória oscilante do federalismo em seu país — uma espécie de pêndulo entre descentralização retórica e centralismo funcional. A partir de dados socioeconômicos, mapas de pobreza e expectativas de vida, Medrano descreveu como o México convive com uma profunda cisão territorial e institucional. Apesar de seu status formal de república federativa, o México viveu décadas de hiperpresidencialismo sob o Partido Revolucionário Institucional (PRI), consolidando um sistema de seguridade social altamente segmentado. A segmentação, segundo ela, não é apenas estrutural, mas simbólica: há um México do seguro social e outro da “população aberta”, sem qualquer proteção regular — uma distinção que se cristaliza no financiamento desigual, no acesso aos serviços e nas formas de atenção.
Medrano destacou que, embora iniciativas como o Seguro Popular (2003) e, mais recentemente, o IMSS-Bienestar (2020) tenham buscado reduzir essa lacuna, os movimentos de centralização são frequentemente motivados não pela busca de equidade, mas por tentativas de controle sobre a corrupção estatal.
“A letra da Constituição diz que o acesso à saúde é universal e gratuito”, ironizou, “mas isso não se realiza sem um aumento robusto de investimento público”.
Anahely Medrano Buenrostro
Seu diagnóstico final foi contundente: o México vive um paradoxo entre uma promessa constitucional ambiciosa e uma capacidade fiscal cronicamente subfinanciada, agravada por incertezas econômicas e polarizações políticas que colocam o futuro da saúde pública em suspenso.
O canadense Gregory Marchildon, professor da Universidade de Toronto e especialista em sistemas comparados de saúde, seguiu com um panorama radicalmente distinto, mas igualmente inquietante. Ao descrever o Canadá como “uma das federações mais descentralizadas do mundo”, Marchildon lançou mão de mapas, indicadores e ferramentas analíticas para mostrar como o poder no país está concentrado nas províncias — o equivalente canadense aos estados. O governo federal, segundo ele, possui um papel mais simbólico do que executivo: formula um arcabouço geral (como o Canada Health Act) e transfere recursos às províncias, mas é nos governos provinciais que se decide a provisão dos serviços, a alocação de recursos e a gestão cotidiana da saúde.
Essa descentralização, contudo, não implica pulverização. Pelo contrário: Marchildon mostrou como o modelo canadense de “universalidade em camada única” evita os riscos de um sistema dual — privado e público — ao proibir seguros privados para os serviços cobertos pelo sistema público. “Não há válvula de escape privada. Isso fortalece a solidariedade, mas também gera desafios”, afirmou. Entre eles, as longas listas de espera para cirurgias eletivas e atendimentos especializados, que minam a confiança da população no sistema e colocam pressão sobre as autoridades provinciais.
Mas foi com o “decision space tool” — um instrumento comparativo desenvolvido em parceria com pesquisadores de Harvard — que Marchildon buscou uma lente mais fina. A partir de cinco dimensões (financiamento, provisão, recursos humanos, regras de acesso e governança), ele comparou os níveis de descentralização em países federativos. O Canadá apareceu como altamente descentralizado em quase todos os eixos, enquanto o Brasil, curiosamente, oscilou entre descentralização formal e práticas ainda centralizadas. “A colaboração intergovernamental foi decisiva durante a pandemia”, afirmou, ressaltando que países com maior articulação, como o Canadá e a Alemanha, apresentaram melhores resultados em mortes evitáveis por covid-19.
O último a falar foi o norte-americano Phillip Rocco, professor da Marquette University e coeditor da Publius: The Journal of Federalism. Com uma retórica envolvente, Rocco abriu sua fala com três histórias que sintetizam a lógica do federalismo estadunidense: um surto de sarampo em uma cidade dividida entre dois estados, a legalização da maconha na Califórnia antes de qualquer aprovação federal, e o litígio judicial que minou parte do Affordable Care Act (Obamacare). “Esses casos mostram três coisas: fragmentação institucional, espaço para inovação e, sobretudo, a permanente possibilidade de sabotagem política”, disse.
Rocco defendeu que a governança em saúde nos Estados Unidos está estruturada não apenas por uma divisão formal de competências, mas por um emaranhado de disputas ideológicas, pressões econômicas e manipulações institucionais. As múltiplas camadas do sistema — federal, estadual, municipal, tribal e distrital — coexistem sem coerência programática. O resultado é um mosaico de realidades onde o local determina não só a qualidade do atendimento, mas o próprio direito à saúde. O Affordable Care Act, por exemplo, encontrou forte resistência em estados controlados por governadores republicanos, que se recusaram a expandir a cobertura do Medicaid, mesmo com incentivos financeiros generosos.
A politização crescente da saúde pública foi um dos pontos mais fortes de sua fala. Em tempos recentes, políticas básicas como a fluoretação da água, a vacinação e o uso de máscaras tornaram-se campos de batalha partidária. A consequência disso, segundo Rocco, não é apenas a desigualdade no acesso, mas a erosão da confiança pública e o enfraquecimento da democracia local. “A relação entre democracia e saúde nunca foi tão nítida”, concluiu. “E nos Estados Unidos, ambas estão sob ataque.”
As falas da manhã não ofereceram soluções fáceis, nem receitas prontas. Ao contrário, revelaram o quanto o federalismo — frequentemente tratado como um dado neutro — é, na verdade, um campo de disputas que modela as possibilidades de cuidado, equidade e justiça social. Em comum, os três países apresentados compartilham dilemas que, embora distintos em intensidade e forma, apontam para uma lição central: sem colaboração efetiva entre níveis de governo, não há sistema de saúde capaz de enfrentar os desafios contemporâneos.