O cuidado, no Brasil, permanece no limiar entre o que é essencial à vida social e o que é invisível nas prioridades do Estado. No cotidiano, ele se materializa em jornadas extenuantes, majoritariamente femininas e, em grande parte, sustentadas por mulheres negras em condições precárias. Na Semana da Economia de 2025, no Instituto de Economia da Unicamp, a mesa “O direito ao cuidado no Brasil” reuniu três pesquisadoras — Jordana Cristina de Jesus, Mariana Mazzini Marcondes e Luana Simões Pinheiro — para examinar, sob diferentes ângulos, como essa dimensão central da vida coletiva é estruturada, distribuída e negligenciada nas políticas públicas.
Jordana Cristina de Jesus iniciou a conversa situando o cuidado como trabalho socialmente necessário e historicamente desvalorizado. A partir de dados sobre a distribuição das responsabilidades domésticas e de cuidado no Brasil, ressaltou que mulheres negras concentram, de forma desproporcional, as tarefas mais precárias e informais. Essa sobrecarga, observou, não é apenas econômica: repercute no acesso a direitos, na saúde física e mental, e nas trajetórias profissionais. Jordana argumentou que as políticas públicas brasileiras ainda tratam o cuidado como responsabilidade individual ou familiar, reforçando padrões que reproduzem desigualdades estruturais. Ao mesmo tempo, defendeu a centralidade do cuidado como dimensão estratégica de um modelo de desenvolvimento inclusivo, capaz de gerar emprego qualificado e promover bem-estar coletivo.
Em seguida, Mariana Mazzini Marcondes aprofundou o debate ao apresentar experiências e lacunas na implementação de políticas voltadas ao cuidado no Brasil. Retomou marcos normativos e iniciativas recentes, como a Estratégia Nacional de Cuidados, mas destacou a falta de transversalidade e integração com outras áreas de política social. Para Mariana, a fragmentação institucional compromete tanto a eficiência quanto a efetividade das ações, deixando descobertas populações que mais necessitam de apoio. Ela analisou a experiência de outros países latino-americanos que vêm estruturando sistemas nacionais de cuidados, apontando que a institucionalização do tema requer articulação intersetorial, definição clara de responsabilidades entre entes federativos e financiamento estável. A ausência desses elementos, frisou, mantém o cuidado no campo da invisibilidade política.
Luana Simões Pinheiro, por sua vez, trouxe para a discussão uma leitura de longo prazo sobre a construção social do cuidado no país, articulando dimensões históricas e institucionais. Lembrou que, no Brasil, a divisão sexual do trabalho se consolidou em um contexto de escravidão e pós-abolição que naturalizou a atribuição das tarefas domésticas e de cuidado a mulheres, em especial negras e pobres, muitas vezes em regime informal e mal remunerado. Luana argumentou que esse legado histórico ainda molda o mercado de trabalho contemporâneo e os arranjos familiares, e que as tentativas de regulamentação e valorização do setor esbarram em resistências econômicas e culturais. Ao refletir sobre experiências internacionais, defendeu que o Brasil precisa ir além de políticas compensatórias e avançar na construção de um sistema universal de cuidados, articulado a direitos trabalhistas e à seguridade social.
A mesa avançou na análise ao explorar os impactos macroeconômicos do cuidado. As três palestrantes convergiram na ideia de que investir nesse setor não é apenas uma medida de justiça social, mas também uma estratégia de desenvolvimento econômico. O cuidado, ao criar empregos formais e qualificados, pode estimular cadeias produtivas, ampliar a arrecadação e reduzir gastos futuros em saúde e assistência social. No entanto, alertaram, isso exige enfrentar a precarização atual, que mantém milhões de trabalhadoras em condições de baixa remuneração, jornadas extenuantes e escassa proteção social.
Outro ponto de consenso foi a necessidade de inserir o cuidado no debate sobre planejamento urbano e políticas territoriais. Jordana destacou que a localização e a oferta de serviços públicos — como creches, escolas e unidades de saúde — afetam diretamente o tempo e os recursos dedicados ao cuidado. Mariana acrescentou que a ausência de infraestrutura adequada em áreas periféricas amplia as desigualdades e reforça ciclos de pobreza. Para Luana, qualquer desenho de política de cuidados precisa considerar a heterogeneidade territorial e a diversidade de arranjos familiares, evitando soluções padronizadas que não dialoguem com a realidade local.
A dimensão de gênero permeou todo o debate, não apenas como categoria analítica, mas como eixo para a formulação de políticas. As palestrantes enfatizaram que, sem redistribuição efetiva das responsabilidades de cuidado entre homens e mulheres, e entre famílias, Estado, mercado e comunidade, a sobrecarga feminina persistirá. Isso implica, segundo elas, combinar campanhas de mudança cultural com medidas concretas, como licenças parentais mais equilibradas, ampliação da rede pública de cuidados e incentivo à participação masculina.
O diálogo também abordou a necessidade de produção e sistematização de dados. Jordana salientou que, apesar dos avanços em pesquisas sobre uso do tempo e trabalho doméstico, ainda faltam informações consistentes e periódicas para orientar políticas. Mariana reforçou que a ausência de indicadores comparáveis dificulta a avaliação de impacto e a formulação de estratégias de longo prazo. Luana, por fim, apontou que a invisibilidade estatística contribui para a baixa prioridade política do tema.
A mesa “O direito ao cuidado no Brasil” foi finalizada com uma reflexão coletiva sobre a urgência de colocar o cuidado no centro do pacto social brasileiro. As três pesquisadoras ressaltaram que isso exige mais do que ampliar serviços: requer uma mudança estrutural na forma como o país organiza seu sistema de proteção social, reconhece o trabalho reprodutivo e distribui responsabilidades entre Estado, mercado e famílias. No auditório, a discussão deixou claro que o cuidado não é apenas uma questão privada ou feminina, mas um bem público essencial à vida em sociedade — e que ignorá-lo significa perpetuar desigualdades e comprometer o desenvolvimento.
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