No painel especial que encerrou a manhã do segundo dia do Seminário Internacional sobre Governança da Saúde em Países Federativos e Descentralizados, o Peru trouxe à mesa uma experiência sobre o desafio de reverter a fragmentação dos sistemas de saúde. Pedro Cruzado Puente, Diretor-Geral da Direção de Redes Integradas de Saúde do Ministério da Saúde peruano, detalhou o processo de implementação das Redes Integradas de Saúde (RIS) no país, ancorado em três ideias-chave: decisão política, governança territorial e estruturação progressiva.

Em sua exposição, Cruzado apresentou um diagnóstico que dialoga com os demais países da região: o Peru possui um sistema segmentado entre subsistemas públicos e privados, sem coordenação entre os níveis de atenção e com forte desigualdade territorial. A estrutura pública inclui o Ministério da Saúde, a Seguridade Social, as Forças Armadas e a Polícia, cada um com regulação, financiamento e administração independentes. O resultado é um sistema onde o acesso às prestações de saúde depende do subsistema ao qual a pessoa está vinculada, com pouca ou nenhuma possibilidade de integração.

“Temos 100% da população com algum tipo de seguro, mas 40% dela não consegue se atender, por falta de acesso efetivo”, resumiu.

Pedro Cruzado Puente

Para enfrentar essa fragmentação, o Peru tem apostado na criação e estruturação de RIS, com base em legislações recentes e um modelo nacional de organização do cuidado. Desde a promulgação da Lei das RIS, em 2018, seguida por regulamentações em 2020, 2021 e 2024, foram conformadas 214 redes em todo o país, das quais apenas 136 estão minimamente estruturadas, e apenas sete simuladas – ou seja, em fase mais avançada de integração funcional. Segundo Cruzado, apesar da expansião nominal das RIS, 57% delas seguem desintegradas e 43% estão parcialmente integradas.

O modelo adotado define quatro componentes essenciais das RIS: governança, financiamento, gestão e prestação de serviços. Esses componentes são avaliados por 18 indicadores que medem o nível de integração da rede. A governança, neste contexto, é apresentada como eixo estruturante: é ela que define o território, articula os diversos atores sociais e permite o planejamento compartilhado das necessidades de saúde. É também a governança que viabiliza a gestão dos determinantes sociais da saúde e garante a participação cidadã.

A experiência de Cajamarca, região com baixo nível de recursos, foi apresentada como exemplo emblemático. Durante a pandemia, essa região teve a menor taxa de mortalidade do país, resultado que Cruzado atribui à governança local e à mobilização comunitária. “Enquanto o país registrava mais de 600 mortes por 100 mil habitantes, Cajamarca teve 284. E isso com menos recursos que outras regiões, mas com mais participação social e articulação territorial”, afirmou. Além de Cajamarca, a RIS de Villa El Salvador foi escolhida como rede iniciadora. Ambas visam completar, ainda em 2025, as quatro fases de desenvolvimento propostas pelo modelo.

A implementação das RIS inclui dez linhas de intervenção, entre elas: georreferenciamento das famílias, formação de equipes multidisciplinares, integração de serviços especializados no primeiro nível, centralização de laboratórios clínicos, implantação de prontuário eletrônico, organização das rotinas de cuidados integrais e programação de gestão de doenças crônicas. Cruzado destacou a importância de incluir médicos especialistas no primeiro nível, contrariando a prática normativa que os concentra nos níveis secundário e terciário.

Outro destaque é o investimento em tecnologia da informação. Cajamarca desenvolveu uma plataforma interoperável, batizada de One Vision, integrada ao prontuário Pacamuros. Esses sistemas permitem gestão em tempo real de recursos humanos, medicamentos, infraestrutura e serviços clínicos, além do acompanhamento individualizado da população. Para Cruzado, esses avanços tecnológicos têm papel central na viabilidade das RIS.

Apesar dos avanços, Cruzado foi categórico ao afirmar que a integração não resolve por si só a escassez de recursos. A qualidade do cuidado tem custo, e o financiamento adequado é condição para sustentação das redes. Além disso, lembrou que normas e planos não garantem mudanças concretas se não forem acompanhados de gestão qualificada, decisão política e envolvimento real dos territórios. “Durante anos tivemos boas leis, mas as RIS não saíram do papel. Só funcionaram onde houve liderança, compromisso e mobilização comunitária”, resumiu.

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