O segundo dia do Seminário Internacional “Governança da Saúde em Países Federativos e Descentralizados” teve início com um painel voltado à América do Sul. Sob o título “Governança Nacional e Subnacional na América do Sul”, a sessão teve como foco o lançamento público do processo de atualização do documento que serve como referência para a organização das Redes Integradas de Serviços de Saúde (RISS) nos países da região. A apresentação esteve a cargo de Ernesto Bascolo, médico sanitarista e pesquisador da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), responsável pela condução da iniciativa em nome do organismo internacional.
O documento apresentado, ainda em construção, tem como título “Actualización del marco conceptual y operacional de las Redes Integradas de Servicios de Salud (RISS)” e corresponde a uma versão de trabalho datada de janeiro de 2025. Segundo Bascolo, trata-se de um esforço de revisão crítica do marco publicado em 2010, incorporando os aprendizados das últimas décadas, em especial da pandemia de covid-19, da aceleração das transformações tecnológicas e da intensificação das desigualdades estruturais na América Latina. O objetivo do processo é construir uma nova geração de consensos e instrumentos conceituais e operacionais para guiar reformas e políticas públicas nos sistemas de saúde da região.
A exposição de Bascolo articulou diagnóstico, revisão teórica e proposta de ação. O ponto de partida foi o reconhecimento de que os sistemas de saúde latino-americanos permanecem fragmentados, segmentados e marcados por desigualdades profundas de acesso, qualidade e resultados. Essa fragmentação, sustentou, não é meramente técnica, mas resultado de disputas institucionais, políticas e ideológicas que moldaram a configuração dos sistemas ao longo do século XX. As reformas orientadas pela cobertura universal mínima, impulsionadas nas décadas de 1980 e 1990, reforçaram a segmentação sem alterar de forma substantiva os modelos de atenção.
“Construímos sistemas que ampliaram a cobertura, mas mantiveram a fragmentação institucional e a exclusão social como marcas estruturantes”, afirmou.
Ernesto Bascolo
A proposta de atualização do marco das RISS parte de um diagnóstico de insuficiência dos modelos existentes. O documento propõe uma nova arquitetura teórica sustentada por quatro componentes: fundamentos, atributos, mecanismos e níveis de maturidade. Os fundamentos atualizados incluem a centralidade do direito à saúde, a priorização da equidade e a noção de bem comum como eixo organizador da ação estatal. Os atributos operacionais, por sua vez, envolvem a territorialização do cuidado, a integralidade da atenção, a coordenação clínica e organizacional e a corresponsabilidade entre níveis de governo e entre setores.
No centro da proposta está o conceito de maturidade progressiva das redes, que visa orientar processos de planejamento e avaliação. Em vez de um modelo ideal e normativo, propõe-se uma abordagem gradualista, baseada em estágios de desenvolvimento das redes segundo critérios verificáveis e contextualizados. Os níveis vão de “rudimentar” a “avançado”, e cada estágio é definido por um conjunto de capacidades institucionais, mecanismos de coordenação e resultados esperados. “Não estamos falando de um novo modelo ideal. Estamos propondo uma ferramenta viva para guiar os países em seus próprios caminhos de construção de redes, respeitando seus contextos federativos, capacidades institucionais e prioridades políticas”, explicou Bascolo.
Um dos pontos centrais do documento é a ênfase na governança multinível e no papel dos territórios como unidades fundamentais da organização das redes. O texto reconhece explicitamente que, em sistemas federativos e descentralizados, a organização das RISS deve ser pactuada entre diferentes níveis de governo, com forte presença da comunidade, das instituições de base e dos profissionais do sistema. O território deixa de ser visto como simples espaço geográfico e passa a ser considerado lugar de vida, relações sociais e produção de sentido. Esse deslocamento conceitual tem implicações práticas: exige estratégias de regionalização, mecanismos de cogestão e arranjos de financiamento compatíveis com a complexidade dos sistemas locais.
Durante a apresentação, Bascolo destacou ainda a importância de atualizar o campo das políticas de saúde a partir de uma visão ampliada de bem-estar, que inclua determinantes sociais, ambientais e culturais.
“A saúde não pode continuar a ser tratada como mercadoria, nem como um pacote mínimo de serviços. Ela precisa ser reconstruída como um bem comum, protegido por políticas públicas fortes, sustentadas por pactos sociais amplos e por sistemas universais e integrais”, afirmou.
Essa reconstrução, para ele, passa necessariamente pelo reconhecimento do papel estratégico das redes integradas como forma de superar a fragmentação e recuperar o vínculo entre Estado, território e cidadania.
O documento, que agora entra em fase de debate regional, será submetido a consultas públicas e oficinas técnicas com países da região, com apoio da OPAS e de centros de pesquisa vinculados às políticas de saúde pública. A expectativa é que a versão final seja publicada ainda em 2025, consolidando-se como referência para os processos de planejamento, implementação e avaliação das políticas de organização das redes de atenção. A plataforma digital da OPAS deverá abrigar o processo participativo, com versões comentadas, relatórios de reuniões e propostas de instrumentos de apoio à gestão.
O lançamento da atualização do marco das RISS busca afirmar que a reconstrução dos sistemas de saúde na América Latina exige mais do que financiamento e infraestrutura. Exige novos pactos federativos, nova gramática institucional e um novo horizonte de sentido para a ação pública. Como pontuou um dos participantes do seminário, “trata-se de reorganizar o cuidado desde os territórios, reconhecendo que a saúde se produz na vida cotidiana e que as redes só serão integradas se forem vivas, plurais e comprometidas com o comum”.
O painel, que contou ainda com comentários de especialistas e gestores brasileiros, marcou um ponto de inflexão no evento. Ao propor uma atualização conceitual e metodológica das RISS com base na realidade latino-americana, a OPAS e seus parceiros indicam que o futuro da saúde na região depende, em grande medida, da capacidade de construir redes que superem o isolamento institucional, valorizem os saberes locais e fortaleçam a democracia sanitária nos territórios.