Nelson Rodrigues dos Santos | Centro de Estudos Estratégicos/Fiocruz
TÓPICOS
1. REFERENCIAL PRÉ-PANDÊMICO – A macroconjuntura dos 33 anos pós- constitucionais e as microconjunturas governamentais e ministeriais: – o SUS, o seu financiamento, a relação público-privada e o modelo constitucional de saúde.
2. PERÍODO PANDÊMICO – No SUS, o descolamento federal das esferas estadual, municipal e da sociedade, sob a herança da macroconjuntura dos 33 anos.
3. INUSITADO SENSO COMUM – O abalo da pandemia na economia em todos os países e espaços na democratização das relações Sociedade-Estado.
4. PROPOSTA – Prioridade estratégica à assunção e construção da diretriz constitucional da Regionalização/Hierarquização.
1º TÓPICO—REFERENCIAL PRÉ-PANDÊMICO
Partimos da riquíssima acumulação de avaliações e publicações sobre os 30 anos do SUS realizadas a partir de 2018, com destaque à retumbante inclusão social e prestigio do SUS com a realização da Universalidade antes de finalizar sua primeira década. Apesar do hercúleo esforço no rumo do modelo de saúde constitucional, a precária e/ou excepcional e/ou marginal realização da Equidade, Regionalização e Integralidade, com Atenção Básica efetivamente universal de alta resolutividade, vem sendo mantida em patamar impotente para a efetivação da mudança do modelo.
A esfera executiva federal, parte mais intrínseca na estrutura do Estado nacional, vem sendo mais causal sobre o que, na média, permanece devido até nossos dias. Já no início dos 33 anos, desconsiderou a recomendação constitucional de 30% do Orçamento da Seguridade Social para o SUS, retirou o Fundo da Previdência Social do cálculo da parcela federal ao SUS, neutralizou o acréscimo da CPMF por meio de retração de outras fontes e, no Legislativo, negociou a substituição da PEC-169 que destinava a SUS 10% da receita de cada esfera de governo, pela EC-29 que destinou 15% da receita Municipal e 12% da Estadual, permanecendo a Federal sem porcentagem da sua receita. Ao Executivo Federal se deve que o nosso per-capita do financiamento público universal na saúde permaneça nos 33 anos do SUS, entre 1/6 a 1/5 do praticado nos países da OCDE, cuja maioria contempla formatos de Estado de Bem Estar Social, também contemplado no Título da Ordem social da nossa Constituição.
Nesses países a maioria os serviços privados complementares no interior do sistema público são realmente complementares, minoritários perante os públicos, e funcionam como se públicos fossem. Em nosso setor público de saúde pós-constitucional, permanece precária a elevação do financiamento, da eficácia, eficiência e governança voltadas à implementação do conjunto das diretrizes constitucionais. O forte desinvestimento federal na capacidade instalada pública integra, também nos 33 anos do SUS, a opção pela oferta de serviços ser complementada com a compra em entes privados: entre 65% (hospitalizações) e acima de 90% (diagnose e terapia). Por outro lado, a esfera federal, também nos 33 anos do SUS, passou a subsidiar fortemente as operadoras de planos privados com renúncia fiscal de valor maior que o lucro líquido por elas declarado, resultando o valor do per-capita médio dos 25% da população consumidora, 4 a 6 vezes maior que o dos 75% usuários do SUS. Assim, o gasto total da Saúde Suplementar para 25% da população, ultrapassa o gasto total com o SUS para os outros 75%.
Em função da reconhecida predominância dos valores do pluralismo e convivência em nossa sociedade, e da garantia constitucional desse convívio, não há como nos opor às práticas privadas, desde que:
a) na captação de clientela sigam os preceitos éticos vigentes quanto aos direitos humanos, do consumidor e dos protocolos científicos, e
b) na opção da venda de serviços ao SUS, prestem serviços como se públicos fossem, seguindo os protocolos de condutas sob a lógica das diretrizes constitucionais da Universalidade, Equidade, Integralidade, Regionalização/Hierarquização, Controle Social e demais, isto é, o modelo de atenção “SUS”. Nesses termos, são possíveis em princípio: – entes privados de saúde contratados e conveniados pelos governos, OSs, Oscips, PPP (parcerias público-privadas), planos de saúde pelas operadoras privadas, e outros formatos.
Retomaremos esta questão no 4o Tópico, mas desde já registrando que, nos 33 anos pós-constitucionais, as práticas privadas na saúde em regra desenvolvem-se ao inverso das condições a) e b) acima apontadas.
Não há como não reconhecer nesses 33 anos pós-constitucionais, a evidência da constância de uma assumida estratégia federal para o financiamento do SUS e relações com setor privado na saúde. Como se não bastasse, outra constância simultânea não menos preocupante, refere-se à precária e por vezes nula implementação das diretrizes constitucionais da Regionalização, Equidade e Integralidade. Para fins dos objetivos deste texto-subsídio, vemos a Região de Saúde como o conjunto de municípios limítrofes de diferentes portes, cujo conjunto conta com estrutura de saúde suficiente ou pressuficiente para o atendimento universal, integral e equitativo à saúde da população regional, com fácil acessibilidade intermunicipal. Em outras palavras: o SUS acontece constitucionalmente nos Municípios e Estados, mas só na Região de Saúde acontece como a menor célula sistêmica do SUS por propiciar a realização do conjunto das diretrizes constitucionais – modelo de atenção à saúde, inclusive refletindo as características de cada região: populacionais, socioculturais, epidemiológicas, econômicas, viárias, etc. Leve-se em conta que todos os países com sistemas públicos universalistas de saúde em todos os continentes, iniciando pela grande maioria dos europeus, esses sistemas consolidaram-se assumindo a Região de Saúde como a célula básica organizacional e funcional.
As diretrizes constitucionais do SUS, incluindo a Regionalização, tiveram suas raízes debatidas e assumidas desde os crescentes debates da gestação e nascimento do SUS nos anos 1970/1980: Simpósios Nacionais de Políticas de Saúde na Câmara dos Deputados, 8ª Conferência Nacional de Saúde, Comissão Nacional da Reforma Sanitária e Assembleia Nacional Constituinte, passando pelos debates do Conass, dos Cosems (em cada Estado) e do CONASEMS. Da mesma maneira, predominava há 33 anos, a visão e perspectiva dos serviços do SUS, privados complementares contratados, cingirem-se a situações especiais realmente complementares, perante a perspectiva coerente e responsável para o SUS, de investimento público na capacidade instalada própria, o que foi esvaziado pela esfera federal. E com relação aos serviços privados suplementares (planos e seguros privados), era constatado há 33 anos, se encontrarem em fase ainda incipiente quando comparado aos nossos dias. Como ocorreram essas perspectivas nesses 33 anos?
Aprovada a Constituição, com barreiras até hoje não transpostas à construção da Regionalização/Hierarquização, apontaremos a seguir oito exemplos reais de exaustivas construções com base nas diretrizes constitucionais e Lei 8080/1990, que na etapa final foram descartadas pela instância federal:
1- Em 1995, oportuna oficina de trabalho sobre Regionalização patrocinada e organizada pelo Conass e Opas, com participação do CONASEMS e Ministério da Saúde que, sob o positivo impacto da inclusão social pelo SUS, debateu e priorizou a implementação da Regionalização, com relatório final enfático pelo início imediato,
2- A NOB-1996 e as NOAS-2001/2002 albergaram crescentes dispositivos de implementação da Regionalização, debatidos e aprovados pelo Conass, Conasems, e MS, cuja implementação pressionava os limites dos repasses federais segundo metas estaduais e municipais pactuadas na Comissão Intergestores Tripartite (CIT).
3- Em 2003, simultaneamente, a) implementação pela Secretaria Executiva do Ministério da Saúde (Secretário Gastão Wagner), de proposta inicial de Regionalização a ser debatida com o Conass e Conasems, e realização do oportuno Projeto Integrado para a Qualificação da Gestão Descentralizada, e b) entrada na Câmara Federal do PL-01/2003, com contrapartida federal de 10% da Receita Bruta da União, significando acréscimo ao SUS de 0,7% do PIB. Sua redação final aprovada ao final de 2004, após riquíssimo debate com representações do Conass, CONASEMS, CNS, entidades da Reforma Sanitária e com as Comissões da Câmara dos Deputados: Seguridade Social e Família, Constituição e Justiça e Finanças/Tributação. Na redação final, enriquecida e aprovada (Substitutivo Guilherme Menezes), constou a vinculação estratégica desse acréscimo financeiro à implementação das diretrizes da Equidade Integralidade e Regionalização,
4- Em 2006 novo ministro da Saúde respaldou amplo e elevado debate sobre o “Pacto pela Vida, em Defesa do SUS e de Gestão”, entre o MS, Conass, Conasems, e CNS e a favor dos 10% da RCB para o SUS,
5- Em 2007 no Senado foi apresentado e tramitado o PL-121/2007 resgatando o conteúdo do PL 01/2003 e também tramitou positivamente,
6- Em 2011 a expedição do Decreto Federal 7508/2011, formulado pelo Idisa, Conasems, Conass e MS, que dispõe sobre conceitos e ângulos básicos do processo da Regionalização, mas sem força de Lei para articular a Regionalização entre as três esferas,
7- Em 2012, na Câmara Federal foi novamente apresentado o conteúdo do PL-01/2003, agora como PL 141/2012, mas, foi para votação no plenário sob a condição de aprovação sem o artigo referente à elevação do financiamento federal. Resultou na Lei federal 141/2012, até hoje roteiro legal da implementação da Equidade, Integralidade e Regionalização, mas sem os recursos adicionais, e
8- Em 2013 o mesmo, novamente na Câmara dos Deputados, agora o PL 321/2013 com amplo apoio de mais de 100 entidades da sociedade civil, encabeçadas pelo CNS e CNBB, com mais de 2 milhões de assinaturas de eleitores.
Reafirmamos: – essas oito exaustivas construções das diretrizes constitucionais e inúmeras outras na mesma direção, foram descartadas pela esfera federal na sua etapa final, e esse descarte, nesses 33 anos revelou-se gerado acima do próprio Ministério da Saúde, que por sua vez revelou-se Ministério de Governo, subalterno aos ministérios de Estado: os da Casa Civil, da Fazenda/Planejamento/Orçamento/Gestão e o da Defesa. Esses são os que articulam na bancada situacionista do Legislativo as votações e tramitações dos projetos de Lei, inclusive sua retirada da pauta de votação no plenário, o que aconteceu nos oito exemplos acima. Essa mesma hegemonia dos ministérios de Estado com maior ou menor resistência no Ministério da Saúde, nucleou nesses 33 anos, as reais relações do SUS com os subsistemas privados de saúde, o complementar e o suplementar, conforme já apontado sinteticamente. Também reconhecemos a clara precedência da hegemonia expressada, tanto implícita como explicitamente pela esfera federal, nos 33 anos pós-constitucionais, na correlação de forças do desenvolvimento do SUS: – impondo-se frequentemente como política de Estado na sua macroeestrutura política e de financiamento que aqui resumimos. Por isso as abordagens e reflexões neste texto, referem-se à macroconjuntura dos 33 anos, que vemos submeter as subconjuturas de cada mandato governamental, suas coligações partidárias e mandatos ministeriais (estes, na Saúde, com duração média pouco mais de 1 ano).
Na realidade, até 2019, véspera da pandemia COVID-19, a “militância SUS”, desde os trabalhadores de saúde na Atenção Básica e conselhos locais de saúde, até os profissionais especializados em serviços públicos de transplantes de órgãos e tecidos, gestores municipais (Conasems/Cosems), estaduais (Conass) e federal (MS), a produção acadêmica de ensino e pesquisa para o SUS, e entidades da sociedade, conseguiram o desenvolvimento de estratégias de resistência e avanços possíveis em todos os níveis do sistema, comprovando na prática o acerto das diretrizes constitucionais, e por isso, bandeiras inarredáveis. E mais: cientes em concentrar esforços para a continuidade dos avanços possíveis na implementação do modelo SUS, reconhecendo a faixa estreita perante o volume de serviços prestados, mas, nesses 33 anos, comprovando na prática a excelência da política pública constitucional. E assim, impedir ou postergar o seu desmanche e aguardar mudanças civilizatórias no Estado nacional, efetivamente voltadas para as diretrizes constitucionais. Como se desenvolve essa faixa estreita a partir da pandemia?
2º TÓPICO—PERÍODO PANDÊMICO
Já no início de 2020, com a pandemia COVID-19, as três esferas de governo assumiram brevíssimo período inicial de construção conjunta de ações para diagnóstico de situações de risco, estratégias preventivas e assistenciais locais, regionais, estaduais e nacional. Logo a seguir, todo o escalão técnico do Ministério da Saúde mais experiente, foi substituído por militares com outras “expertises”, a esfera federal enveredou para posicionamentos e ações contra os afastamentos sociais, máscaras e vacinas, assim como adquirindo e distribuindo medicamentos comprovadamente ineficazes, em conluio com parte dos produtores e distribuidores, isto é, explicitamente negacionistas e charlatanistas, seguidos por um séquito de colaboracionistas.
A Comissão Parlamentar de Inquérito em curso no Senado já checou e apurou as negativas e postergações na aquisição de vacinas, e ação de lobismos e corrupção nas importações postergadas, que junto a oferta governamental de medicamentos ineficazes, expôs parte da população à doença, com pelo menos 100 mil óbitos evitáveis.
Apesar da hegemonia da esfera federal nos 33 anos na gestão do SUS, a experiência acumulada da gestão descentralizada (estadual e municipal), contra-hegemônica mas junto a entidades da sociedade, academia, poder Legislativo e outras, vem compensando parcialmente o grande vácuo imposto pela esfera federal e sua influência na opinião pública. A gestão estadual e municipal vêm se desdobrando com criatividade e articulações suficientes para a formulação e realização de ações intensivas e contínuas, na prevenção e assistência, no limite dos seus recursos e dos efeitos das distorções federais. Desde o início, acatando as recomendações e protocolos da OPAS/OMS, da FIOCruz e das nossas universidades, chegando em alguns casos a resgatar a gestão regional, avançando na visão do pacto federativo. Contra a correnteza federal, a partir de 2020 foi assumido pela opinião pública e comunicadores sociais, o reconhecimento pelo desempenho do SUS, respaldado pelas Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde às medidas preventivas (distanciamentos sociais, máscaras, higienizações, até orientações voltadas para novos processos de trabalho, etc.) e assistenciais (ambulatoriais e hospitalares), em regra, com maior impacto nas Regiões socialmente mais vulneráveis.
Com relação à imunização, ridicularizada e postergada pela esfera federal, esta acabou cedendo, ainda que parcialmente, somente a partir de Dez/2020 e Jan/2021, acuada pela movimentação estadual e municipal para importação direta de vacinas, como também pela comoção nacional do atroz pico da mortalidade no Amazonas, sem oxigênio nas UTIs. As estimativas de doentes e mortes evitáveis por COVID-19 em nosso país, suscitam desde o início, declarações e manifestações na cúpula federal, apontando para inacreditável postura mística paranoide, de que a mortalidade pela seleção natural darwinista precede os avanços civilizatórios do direito à saúde e à vida, assumidos pela quase totalidade das sociedades e países. Aproximamos hoje de 22 milhões de doentes de COVID-19 e 600 mil mortes, incluídas as de 530 na Enfermagem e 470 na Medicina. Apesar do negacionismo e postergações federais, ainda assim prevaleceu em nossa população a imagem confiável deixada pelo SUS e seu Programa Nacional de Imunização-PNI : – em Julho/2021, 56% da população aguardava sua 1ª dose e 38% aguardava sua 2ª dose, totalizando 94%. Em Setembro/2021, o governo federal descarta os jovens sadios da vacinação, e após duas semanas de grande reação social e dos meios científicos e de comunicação, revê a decisão.
Retomando o grande reconhecimento social pelo desempenho do SUS no enfrentamento da pandemia, muito nos preocupa que para o SUS, essa inabdicável priorização emergencial, respaldada pela riquíssima experiência de 33 anos, acabou sento viabilizada em prejuízo e restrição das demais atividades prioritárias do SUS frente à totalidade das necessidades de saúde da população, inclusive as efetivamente realizadas na estreita faixa de sucesso referida ao final do 1º TÓPICO. A ponto da omissão federal gerar iniciativas e intervenções pelo Congresso Nacional, pelo Supremo Tribunal Federal e até pelo Tribunal de Contas da União, com base na Constituição, visando apoio ao exercício das responsabilidades básicas dos Estados e Municípios.
Com a persistência e até elevação da retração federal a partir de 2020 no suporte financeiro, programático e de governança no SUS, emerge preocupante “micro-conjuntura” referente ao próprio SUS, a seguir apontada:
a) a gestão descentralizada Conass/Conasems/Cosems, salvo raras exceções, priorizou a prevenção da Covid-19 e sua assistência ambulatorial e hospitalar, o que gerou as expressivas manifestações de reconhecimento social ao SUS,
b) ainda assim, não conseguiu conter o aumento de 30% nos óbitos por causas mal definidas, onde certamente constam sub-notificações de óbitos por Covid-19 nos estratos de população mais pobre e desassistida,
c) queda do grau de integração e capacitação para a governança, assim como a coordenação pelo SUS do financiamento, ampliação, qualificação e proteção das próprias equipes de saúde, desarticulando a manutenção dos cuidados básicos de rotina, incluindo as situações de risco materno, infantil, do trabalho, dos crônicos, etc., (somente as consultas médicas caíram pela metade), e
d) emergência de vulnerabilidades e mesmo retrocessos em programas tidos até então como mais consolidados, inclusive desarticulando grande parte da nossa rede de Atenção Básica.
Ainda que no campo contra-hegemônico, estas e outras avaliações e buscas oportuníssimas, além do Conass e Conasems, vem sendo também realizadas por respeitados gestores e estudiosos do SUS como Gastão Wagner de Sousa Campos. Pequenos trechos de reflexão de Gastão Wagner em texto de Junho/2021: – “A pandemia retirou o SUS da invisibilidade na qual a classe média, a mídia e os formadores de opinião o haviam colocado ao longo dos últimos 30 anos. Passados esses meses da Pandemia, sem sombra de dúvida, o valor e a necessidade do SUS para enfrentar a epidemia, mas também para cuidar da saúde da população, ganhou mais visibilidade. Parcelas dos intelectuais, de vários matizes políticos e ideológicos, passaram a reconhecer que o Brasil precisa do SUS. Noticiários populares fazem homenagem ao SUS e seus trabalhadores.” “Na prática, houve uma desorientação generalizada, resultando na redução do cuidado antes dispensado aos portadores de agravos crônicos, crianças e gestantes, sem que, todavia, houvessem sido construídos novos arranjos para diagnóstico precoce, rastreamento e isolamento de suspeitos de infecção e comunicantes do coronavirus.” “Não se logrou armar apoio e suporte nacional para que a rede de APS conseguisse controlar a transmissão do vírus durante e depois do abrandamento das medidas de isolamento social.” “O resultado é o genocídio, meio milhão de mortes, a maioria evitável e, portanto, desnecessária.”
Destacam-se também os oportunos estudos e proposições de elevado nível técnico e estratégico da Plataforma Região e Redes, coordenados por Ana Luiza D’Avila Viana, que resgatam a diretriz da Regionalização para primeiro plano estratégico da construção do SUS, e da Plataforma Outra Saúde, coordenada por Maira Mathias e Raquel Torres, informativa, analítica, propositiva e contínua, e inúmeras outras iniciativas de elevado nível.
Não há como não relacionar essa preocupante microconjuntura agudizando opressão sobre o desempenho do SUS, à intensificação da estratégia hegemônica da real política de Estado há 33 anos, que vem promovendo a diretriz da Universalidade, porém sob contundente repressão das diretrizes da Equidade, Integralidade e Regionalização, lembrada no 1º TÒPICO. Não houvesse a hegemonia dessa estratégia de Estado, nesses 33 anos o modelo SUS seguramente teria avançado e consolidado.
Decorrências atuais no campo do mercado na saúde, são a efetivação de iniciativas concretas e proposições de expansão do mercado para demandas reprimidas, como: rede Dr. Consulta, planos privados mais baratos, venda de cirurgias mais simples usando as listas de espera vigentes, empréstimos bancários especiais para comprar procedimentos pós-consulta sujeitos a longa espera, compra desses serviços pelo próprio SUS, projetos de delegação para hospitais privados coordenarem a Atenção Básica no seu entorno, tornar o SUS um prestador de serviços para empresas de planos privados, e o vaucher proposto pelo ministro da Economia.
Também paralelamente, ocorrem megadistorções e desvios como o ruidoso caso de grande empresa privada paulista de planos de saúde para idosos, com 8 hospitais e 4 ambulatórios próprios, com faturamento anual entre 2014 e 2019 elevado de R$ 1 para 3,5 bilhões e lucro anual de 56 para 410 milhões, sob investigação policial por tratamento de segurados com COVID-19, com medicamentos ineficazes contra-indicados, alteração de prontuários, omissão de causa-mortis e manipulação de prontuários médicos, com estudo “científico” elogiado e divulgado pela presidência da República em redes sociais em 18/04/2020.
Essas “micro e macro” iniciativas mercadológicas, contundentemente antissociais e antidireitos humanos, desde às mais centrais às mais periféricas, são geradas no campo hegemônico da nossa real política de saúde há 33 anos. Vale referir aspectos da atual performance conservadora, com base em recentes e oportunas análises de pesquisas de opinião:
—– a “direita” com apoio assumido ao atual governo federal vem oscilando entre 20 – 25% da população, nucleada nos predadores da natureza, em grande parte dos pentecostais ortodoxos com grande fatia de concessões de meios de comunicação, em setores militares incluindo a polícia militar, milícias, indústria de armas e parte das camadas sociais médias,
—– hoje, entre os maiores de 16 anos, 22% apoiam o governo federal, mas no “patronato” esse apoio é de 47%,
—– a grande maioria dessa direita, em 2018, avaliou o atual governo federal como ótimo e bom, confiando no que ele diz, mas sabendo que com sua queda, volta-se à invisibilidade, e
—– em agosto/2020, foram estimados como militantes heavy dessa direita 17% dos eleitores, que em setembro/2021 passaram a 11%.
3º TÓPICO – INUSITADO SENSO COMUM
Os vários graus e formas de distanciamentos sociais por iniciativas individuais e por protocolos sanitários assumidos em todos os continentes produziram, em 2020/2021, abalo médio estimado em 10% na economia. O epicentro desse abalo deu-se no maior campo das atividades socioeconômicas: – o da produção e prestação de serviços, em especial os interpessoais presenciais, e aglomerações como os transportes coletivos, eventos culturais, esportivos, religiosos, políticos e outros, que somados compõem 70% do nosso PIB. Reação imediata ao abalo: – na mesma proporção, grande salto nos investimentos para acesso a serviços não ou pouco presenciais: na alta tecnologia, informática, robótica, trabalho remoto, telemedicina, etc. A nível planetário, vem levando a profunda adequação na estrutura, processos e relações de trabalho. Novas tensões na relação Sociedade-Estado vêm surgindo tanto sob avanços (predominantes) como retrocessos civilizatórios (menos frequentes). Aparentemente as estruturas estatais e as sociedades não estavam culturalmente preparadas até 2020, não só para a assimilação, entendimento e controle mais precoce dessa pandemia, como também dos abalos nas economias, nas relações sociais, políticas e Sociedade-Estado. No Brasil elevam-se intensamente o desemprego, os autônomos pobres, as terceirizações, a pauperização e as pejotizações visando menor tributação. Temos hoje 15 milhões de desempregados, 6 milhões de desalentados, 117 milhões em insegurança alimentar e 19 milhões com fome, além dos 22 milhões com COVID-19 que geraram 600 mil mortos. Sob os abalos pela pandemia, aparentemente perduram em todos os continentes: –
a) a maioria dos países com estratégias menos claras sob o ângulo civilizatório, a maior parte buscando mera sobrevivência, e no outro extremo, alguns poucos, no centro da disputa pela hegemonia na atual etapa do modelo da globalização,
b) a seguir, em grande número de países, com predomínio dos Estados de Bem Estar Social, aparenta processo de avanço civilizatório nas relações sociais e da Sociedade-Estrutura do Estado, a favor dos direitos humanos, de avanços legislativos e de projeto de nação e de bloco continental, e
c) em menor número de países também em todos os continentes, onde nos incluímos, ainda que ancorados no voto popular desde a fase pré-pandêmica, constam marcantes retrocessos radicalmente conservadores e até obscurantistas, que se expressam de modo contundente. Nestes últimos, uma das raízes dos retrocessos parece encontrar-se no aprofundamento das frustrações da ascensão social em crescentes segmentos médios, no contexto da assombrosa concentração da renda, riqueza e ativos financeiros vigente na atual globalização, assim como na insegurança e frustração desses segmentos em participação mais efetiva nas políticas de Governo e/ou no projeto de nação e Estado. A conjuminação desses dois fatores durante certo tempo, pode favorecer a emergência de lideranças carismáticas, obscurantistas e violentas, que, sob o ângulo psico-social, tal qual nas adesões ao “linchamento”, pode capturar adesões nesses segmentos com vistas ao poder de Estado, eleitoralmente ou não. Foram os fatos históricos comprovados do nascimento e evolução do fascismo e nazismo na Itália e Alemanha no século 20 e as recentes tentativas nas últimas eleições presidenciais no EUA e Brasil. É o “ovo da serpente” bem alertado no texto “Entre o Ridículo e o Ameaçador” de André Singer em 19/Set (site aterraehredonda@gmail.com), onde destaca indispensável uma unidade ativa da esquerda, centro e direita, para, sem abdicar dos antagonismos entre si, reunir condições e forças para retorno do “ovo da serpente” à hibernação que só se consolida com o avanço civilizatório.
Em contraposição ao atual retrocesso civilizatório, vale lembrar outros momentos históricos como nos anos 1980 em nosso país, quando foi realizado, com crescente e grandiosa participação social, amplo debate rumo a um projeto de sociedade e nação, inverso ao projeto da ditadura que se extinguia, consubstanciado no Título da Ordem Social da Constituição/1988. Vislumbramos possibilidade atual de retomada nessa perspectiva, agora acrescido da crítica aos formatos de submissão do Estado, sem ouvir a sociedade, à hegemonia da acumulação financeira neoliberal dos últimos 33 anos. Que o diga o inusitado sucesso da atenção universal à saúde, que, mesmo com a precária ou quase sempre simbólica realização da Equidade, Integralidade e Regionalização, vem merecendo sua defesa pela população, inclusive em momentos críticos como o da pandemia. Até porque no processo histórico, 33 anos foi ontem.
Na atual conjuntura, a inesperada desproteção social à pandemia e o já referido “abalo” médio de 10% na Economia, parecem remeter para estremecimento das relações sociais, políticas, culturais e morais, e na relação Sociedade-Estado, aflorando:
— a dinâmica das relações dentro da sociedade, nas relações de reconhecimento e convivência entre seus vários segmentos, com vistas a pactos sociais mais avançados, incluindo nosso país,
— a dinâmica das relações Sociedade-Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário) nas esferas Federal, Estadual e Municipal, com vistas a espaços potenciais de avanço na democratização e pactos federados,
— a importância de análises e prospecções que vem se acumulando em função das referidas pactuações, incluindo avanços e retrocessos civilizatórios em cada país em todos os continentes, e no Brasil até o momento, a opinião pública, os esforços democráticos e importantes segmentos do empresariado e das Forças Armadas, se opondo à expansão e radicalização ditatorial e obscurantista na esfera federal, e
— a alternativa de pactos sociais voltados para a construção de uma “Social Democracia Brasileira” com base no resgate dos nossos avanços constitucionais de 1988, incorporando aos aprendizados sócio-econômicos e político-institucionais dos últimos 33 anos.
Recente análise pela FGV Social da pesquisa Gallup World Poll em 40 países, reconhece ao nível global, a “média” na direção do controle da pandemia e sua participação na redução da desigualdade social. O contrário vem ocorrendo em nosso país: aqui, essa análise com base no PNAD, aponta que de Fevereiro/2020 a Fevereiro/2021 nossos 40% mais pobres pioraram em 10,5% sua avaliação sobre a qualidade do sistema de saúde, os 20% “do meio” pioraram em 7% e os 40% mais ricos mantiveram sua avaliação estável. Estudo do nosso IPEA revelou que 79,6% dos óbitos por COVID-19 no Rio de Janeiro foram nas áreas mais pobres, e na cidade de S. Paulo, estudo de 19,5 mil mortes por COVID-19 revelou que nos distritos com mais de 10% da população com renda per-cápita abaixo de R$275,00, morreram 70% mais por COVID-19 do que nas regiões mais ricas.
4º TÓPICO – PROPOSTA
—— Ampliar, mobilizar e priorizar desde já o debate estratégico (político, técnico e jurídico), para a implementação da diretriz constitucional da Regionalização/Hierarquização das ações e serviços do SUS, iniciando por Regiões de Saúde mais viáveis em cada Estado, agregando a decisiva contrapartida do financiamento federal,
Pressupostos básicos:
a) a construção da Regionalização deve fazer sentido à vida das pessoas na região, com desenvolvimento da consciência do direito humano à saúde no espaço municipal e intermunicipal da Atenção Integral acessível, acolhedora e resolutiva, desde a Atenção Básica às especialidades assistenciais, acolhendo e cobrindo pelo menos 80% da população regional, incluindo os segmentos sociais médios e médio-altos,
b) tal como a CIT ao nível nacional e CIBs no estadual, as Comissões Intergestores Regionais-CIRs são expressão legal dos níveis de governo e legítimas para deliberar, com base na Lei 141/2012 e Decreto 7508/2011, sobre o diagnóstico e planejamento regional dos serviços do SUS, seu formato de gestão pública, sua execução, e avaliação dos resultados, do custo-efetividade, e demais indicadores, ouvidos os Conselhos Municipais de Saúde e/ou sua representação regional,
c) a gestão regional do SUS significa salto qualitativo na realização das deliberações conjuntas das Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde em função da aplicação das diretrizes constitucionais na Região de Saúde. Em nível mais elevado de pactuação na Região de Saúde, os Municípios e Estados testarão e adotarão, sem superposições, formato de gestão pública, consorcial ou não, na gestão regional de recursos materiais, humanos e dos serviços, além do equacionamento de pendências como: — incorporação efetiva das UPAS (mais de 500 e outro tanto em construção), AMES e similares ao âmbito da concepção e gestão da Atenção Básica, incluindo suporte à qualidade e resolutividade das UBS e ESF, assim como a transformação dos hospitais de pequeno porte em unidades mistas de apoio ambulatorial, laboratorial, capacitação de pessoal de saúde e outros, e
d) a dependência financeira, política e estratégica à esfera federal, vem há 33 anos retardando e distorcendo inestimável espaço político-institucional na construção da parceria e sinergismo entre Estados e Municípios, período esse, comprovadamente suficiente para que a construção da Regionalização já houvesse atingido seu acerto e irreversibilidade. Ao contrário, essa diretriz constitucional, nesse prazo, vem sendo ofuscada e desconsiderada, sob o sub-financiamento e verticalismo federal, com pulverização entre 27 Estados e 5.570 Municípios.
Sublinharemos abaixo quatro desdobramentos da proposta sublinhada no início deste 4o tópico, pressupondo fortemente, que se fossem aplicados há 33 anos, sob as expectativas e mobilização da sociedade e dos parlamentares na época, que debateram e aprovaram a Constituição e as Leis 8080/1990 e 8142/1990, seguramente estariam mais próximos de correções e início imediato de aplicação. Mas na atual conjuntura soam como inexequíveis ou até impensáveis. Por isso retomamos as reflexões expostas no tópico anterior, acerca dos abalos e/ou estremecimentos na relação Sociedade-Estado, que vemos apontar para “janela histórica” reabrindo para mobilizações sociais, democratização do Estado, resgate do SUS constitucional e viabilização dos quatro desdobramentos:
1) elevação dos investimentos federais nos serviços públicos em todos os níveis, recuperando o disposto inicialmente na Constituição, e sob critérios definidos pela estratégia da Regionalização/Hierarquização,
2) modernização da gestão pública em todos os níveis, visando cumprir o direito constitucional da Universalidade, Equidade, Integralidade e demais, sob construção da governança ao nível regional, otimização da relação custo-efetividade, da economia de escala, participação dos trabalhadores de saúde sem corporativismos, transparência e participação da população usuária, etc.
3) os serviços privados complementares do SUS, incluindo as OS, OSCIP, as PPP e outros formatos, deverão ser efetivamente regulados para atuar como se públicos fossem, visando o cumprimento cabal de todas as diretrizes legais do modelo de atenção “SUS”, rompendo com práticas mercado/acumulação de capital: lobismos, exclusivismos, monopólios, corporativismo e outros, sob pena de ruptura de contrato e respectiva elevação de investimento em próprios públicos, e
4) no caso dos privados suplementares (mercado dos planos e seguros privados), a relação com o governo deverá ser reprogramada com prazos e etapas, objetivando regra geral de substituir seu financiamento público (renúncia fiscal e outras formas de subsídio público), pela assunção das leis de mercado, com realocação integral dos respectivos recursos federais, também por etapas, à implementação da diretriz constitucional da Regionalização/Hierarquização no SUS. As exceções e desdobramentos dessa regra geral deverão constar em regulamentação debatida e aprovada na CIT e CNS.
Finalizando, reafirmamos posição de que as reflexões expostas no 3o TÓPICO permanecerão durante e após o atual “vendaval” extrema-direita brasileira, vendaval gerado no ventre do conjunto da própria sociedade. Tanto na sua vigência como após esse vendaval, permanecem os desafios estruturais federais de 33 anos no financiamento e estruturação do modelo de atenção à saúde do SUS constitucional.
Gonzalo Vecina reflete que apesar das atuais desgraças de origem federal, entre elas a epidemiológica com a pandemia, o SUS tão maltratado em sua trajetória, vem, pelos Estados e Municípios, sendo o ponto alto a favor da população. Aponta que a Atenção Básica, muito prejudicada e desarticulada, requer estratégias de recriação, elevação da cobertura e resolutividade, além da elevação e reestruturação do financiamento em todos os níveis do sistema. Ele refere: –
a) importância da rede das UPAS e AMES não significar mero amortecimento e compensação da baixa cobertura efetiva e resolutividade da ABS, mas sim, integrar a ABS na sua concepção, qualificação, expansão e gestão e
b) os hospitais de pequeno porte devem der adaptados para unidades mistas sem internação, mas com atividades de apoio adequado ao perfil regional: atenção ambulatorial especializada, capacitação de recursos humanos de saúde, coleta de material para exames laboratoriais, etc.
Segundo Gonzalo, devemos mobilizar e estruturar a construção das Regiões de Saúde, o que implica na própria construção do nosso Estado constitucional. Enfatiza nessa construção, que a oferta da Atenção Integral e Equitativa à Saúde deve se dar sob o paradigma da Avaliação Tecnológica em Saúde, economia de escala (salvo exceções atreladas às diretrizes do SUS), relação custo-efetividade e participação efetiva dos Conselhos de Saúde. Quanto à eleição e ascensão do atual governo federal Gonzalo indaga quais erros e equívocos políticos e de gestão foram cometidos em etapas e governos anteriores, que propiciaram a emergência do governo atual e seus desatinos na saúde e além da saúde. Acrescentamos: sem o que, permanecemos menos credibilizados, e ainda vulneráveis junto às maiorias.
Jurandi Frutuoso destaca seis prioridades desde já: a) expandir a consciência política para os direitos sociais, b) estender a rede de APS, elevar sua resolutividade, incluindo o campo da tele-saúde, c) incorporar os leitos criados durante a pandemia, d) fortalecer a rede nacional de vigilância em saúde, e) fortalecer a CIT, CIBs e CIRs em suas pactuações e competência política na implementação das diretrizes constitucionais, e f) priorizar as pactuações tri e bipartites, perante o lado volúvel da alta rotatividade dos ministros e secretários de Saúde.
* Membro do Conselho Superior do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (Idisa)