Em tempos de pandemia, os sistemas de governança ao redor do mundo foram submetidos a testes sem precedentes. No caso de países federativos, onde diferentes níveis de governo compartilham responsabilidades, o desafio foi duplamente complexo. O livro “American Federal Systems and COVID-19: Responses to a Complex Intergovernmental Problem“, organizado por Brainard Guy Peters, Eduardo Grin e Fernando Luiz Abrucio, oferece uma análise detalhada das respostas políticas e administrativas de cinco países: Brasil, Argentina, Canadá, Estados Unidos e México. Através de uma abordagem comparativa, a obra lança luz sobre as virtudes e limitações do federalismo em momentos de crise global.

Logo no início, os organizadores destacam uma verdade essencial: “O federalismo é uma construção que tanto possibilita a adaptação quanto pode gerar desigualdades profundas nas respostas.” Essa tensão permeia todo o livro, ilustrada por exemplos de medidas inovadoras e falhas catastróficas em diferentes países. O Brasil, por exemplo, emerge como um caso de estudo fascinante sobre conflitos políticos exacerbados. A pandemia revelou tensões entre o governo federal e os estados, com governadores frequentemente contradizendo diretrizes nacionais para implementar políticas de isolamento social mais rígidas. Como destaca um dos autores: “A ausência de coordenação central transformou o Brasil em um laboratório de políticas descentralizadas, com resultados díspares.”

O federalismo é uma construção que tanto possibilita a adaptação quanto pode gerar desigualdades profundas nas respostas.

Enquanto isso, na Argentina, a centralização foi inicialmente a estratégia predominante, com o governo federal liderando esforços para coordenar as respostas regionais. Contudo, com o avanço da pandemia, a necessidade de descentralizar decisões tornou-se evidente. Os autores apontam: “A Argentina enfrentou o paradoxo de tentar equilibrar controle central com a autonomia das províncias, um desafio que revelou tanto as forças quanto as fraquezas do modelo.” Esse contraste entre centralização e descentralização emerge como um tema recorrente ao longo do livro.

No Canadá, a cooperação entre as províncias e o governo federal é descrita como relativamente exemplar, embora não isenta de desafios. “O Canadá demonstrou que um federalismo cooperativo pode mitigar desigualdades regionais, mas a coordenação é tão forte quanto os laços de confiança entre os atores envolvidos”, afirma um dos capítulos. Ainda assim, as diferenças culturais e políticas entre as províncias resultaram em respostas variadas, com Quebec adotando políticas mais restritivas em comparação a outras regiões.

Já os Estados Unidos, talvez o exemplo mais complexo e polarizado, oferecem um retrato de fragmentação administrativa. “A pandemia nos Estados Unidos não foi apenas uma crise de saúde pública, mas uma batalha ideológica travada em níveis estaduais e federais”, argumentam os autores. As disparidades regionais foram amplificadas por uma liderança federal inconsistente, enquanto estados como Nova York e Califórnia implementaram políticas agressivas de contenção que contrastaram fortemente com a abordagem laissez-faire de estados como Flórida e Texas.

No México, a análise recai sobre as limitações estruturais e financeiras que dificultaram uma resposta coesa. O livro descreve como a pandemia expôs as fragilidades do sistema de saúde mexicano e a falta de integração entre os níveis de governo. “A crise no México foi tanto um reflexo de desigualdades históricas quanto de um federalismo em busca de equilíbrio”, observa um autor. Essas desigualdades também se refletem na dificuldade de acesso aos recursos para combater a pandemia, exacerbadas pela disparidade econômica entre os estados.

A comunicação emerge como um tema central ao longo do livro, com exemplos de sucesso e fracasso em todos os países analisados. No Brasil e nos Estados Unidos, as disputas narrativas entre líderes nacionais e regionais geraram confusão e polarização. Em contraste, o Canadá conseguiu alinhar, em grande parte, mensagens públicas consistentes, apesar das divergências regionais. Um dos trechos mais impactantes destaca: “Sem uma comunicação clara e eficaz, mesmo as políticas mais bem elaboradas são condenadas ao fracasso.”

Esse ponto se conecta diretamente ao papel das mídias digitais, que, segundo os autores, atuaram como espelho das divisões sociais e políticas. “As redes sociais amplificaram tanto a desinformação quanto os esforços para combatê-la, criando um campo de batalha virtual que impactou a adesão pública às políticas de saúde.” Essa análise revela o impacto multifacetado da tecnologia na gestão da pandemia.

Sem uma comunicação clara e eficaz, mesmo as políticas mais bem elaboradas são condenadas ao fracasso.

No campo econômico, as medidas de alívio financeiro variaram amplamente. O CARES Act nos Estados Unidos e os programas emergenciais no Brasil e na Argentina são discutidos como exemplos de respostas rápidas, embora limitadas em sua capacidade de mitigar desigualdades estruturais. A Argentina, por exemplo, implementou uma ajuda emergencial centralizada, mas enfrentou desafios na distribuição equitativa devido à burocracia. No México, a falta de recursos para políticas amplas de estímulo econômico destacou as restrições de países com orçamentos mais apertados, enquanto no Canadá, um forte sistema de seguridade social garantiu uma resposta mais homogênea.

Outro aspecto abordado é a inovação emergente durante a crise. No Brasil, consórcios de governadores se uniram para negociar vacinas e equipamentos, enquanto no Canadá, a digitalização de serviços públicos acelerou transformações logísticas. Essas mudanças incluíram a implementação de plataformas digitais para consultas médicas e o uso de dados em tempo real para planejar respostas locais. No México, comunidades locais se mobilizaram para suprir lacunas deixadas pelas autoridades, demonstrando a resiliência da sociedade civil em meio a adversidades.

Governadoras e governadores dos nove estados que compõem o Consórcio Interestadual de Desenvolvimento Sustentável do Nordeste

Os organizadores concluem a obra com um chamado à ação, argumentando que as lições da pandemia devem subsidiar reformas nos sistemas federativos. “A crise da COVID-19 foi um teste para o federalismo, revelando tanto suas fraquezas quanto sua incrível capacidade de adaptação. Aprender com essas experiências é essencial para enfrentar crises futuras.” Eles também destacam a importância de criar canais mais robustos de cooperação intergovernamental e de reforçar a confiança entre as diferentes esferas de poder, especialmente em tempos de polarização política.

Além disso, o livro sugere que futuras crises podem demandar maior flexibilidade nos modelos federativos, permitindo que decisões sejam tomadas de forma mais ágil, mas sem comprometer a transparência ou a participação democrática.

“O futuro do federalismo depende de encontrar o equilíbrio entre autonomia local e solidariedade nacional, um desafio que transcende fronteiras e culturas políticas.”

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