Por Davi Carvalho

Os consórcios verticais de saúde na Bahia têm desempenhado um papel essencial na reorganização das redes regionais de saúde, ao implementar policlínicas que oferecem serviços de saúde especializados. Os consórcios estão preenchendo vazios assistenciais em regiões do interior do estado. Uma pesquisa, coordenada por Luís Eugênio Portela Fernandes de Souza, diretor do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA), avaliou o impacto desses consórcios na estruturação das redes regionais de saúde.

O estudo, realizado nas três primeiras regiões onde os consórcios foram implantados, utilizou análise documental, entrevistas com gestores e um estudo ecológico de séries temporais. Os resultados indicam avanços significativos na expansão do acesso a serviços, com a implantação dos três primeiros consórcios (em 2024, já são 26 consórcios implantados em todas as regiões da Bahia), cada um gerenciando uma policlínica regional. Essas unidades foram construídas e equipadas com recursos do governo estadual e de empréstimo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

A expansão do acesso aos serviços especializados permitiu uma redução importante das desigualdades regionais, notadamente no acesso a exames de tomografia e ressonância magnética. Contudo, problemas relacionados à regulação e ao encaminhamento de pacientes das unidades básicas para as policlínicas ainda precisam ser enfrentados.

A liderança política do governador foi um fator decisivo para o sucesso da implantação, embora os desafios não tenham sido pequenos e alguns ainda persistam, como tensões políticas entre prefeitos e disputas partidárias. Administrativamente, os consórcios e as policlínicas operam com equipes enxutas, enfrentando problemas de sobrecarga de trabalho e manutenção de equipamentos de alto custo. A sustentabilidade financeira também é uma preocupação, dado o crescimento contínuo dos gastos operacionais, divididos entre o estado e o conjunto dos municípios.

A experiência baiana oferece lições para outras regiões do Brasil, destacando a importância da liderança política, do apoio financeiro estadual e da cooperação intermunicipal na promoção da regionalização do Sistema Único de Saúde (SUS).

A seguir, apresentamos a entrevista completa com Luís Eugênio Portela Fernandes de Souza, que aprofunda os resultados da pesquisa e discute os desafios e as perspectivas dos consórcios verticais na Bahia.

O objetivo principal da pesquisa foi avaliar o impacto dos consórcios verticais, envolvendo o estado da Bahia e os municípios, na estruturação das redes regionais de saúde. Esses consórcios foram criados para implementar policlínicas regionais de saúde, que oferecem serviços de média e alta complexidade. Os municípios isolados, especialmente os menores, não têm condições de oferecer todos os serviços necessários para atender suas populações dentro de seus territórios. Por isso, a ideia de região de saúde está associada à criação de redes integradas que preencham esses vazios assistenciais.

A pesquisa teve como objetivos específicos identificar os atores envolvidos, descrever os processos de implantação dos consórcios e avaliar seus efeitos tanto na gestão quanto na assistência à saúde. Para isso, realizamos um estudo de caso nas três primeiras regiões onde os consórcios foram implantados. Fizemos análise documental, entrevistas com gestores estaduais, regionais e municipais, e um estudo ecológico de séries temporais para medir os impactos sobre o uso de serviços, as desigualdades regionais e as condições de saúde.

Esse trabalho foi apoiado pelo PPSUS, com financiamento do Ministério da Saúde e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB). Os resultados podem contribuir significativamente para o debate sobre a regionalização do SUS e o papel dos consórcios nesse processo.

Os resultados da pesquisa mostram que a implantação dos consórcios verticais na Bahia trouxe avanços importantes para a expansão do acesso a serviços especializados, com redução de desigualdades regionais. Hoje, o estado conta com 26 consórcios implantados, cada um gerenciando uma policlínica regional de saúde. Essas policlínicas foram construídas e equipadas com recursos do governo estadual, além de empréstimo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

Do ponto de vista político, a liderança do governador foi um fator decisivo para o sucesso da implantação. Ele conduziu, pessoalmente, negociações cuidadosas com os municípios, que precisaram aprovar leis específicas para aderir aos consórcios.

No entanto, há desafios persistentes, como as tensões com prefeitos de oposição e disputas partidárias entre os municípios consorciados.

Luís Eugênio Portela Fernandes de Souza, diretor do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Em termos administrativos, os consórcios e as policlínicas têm equipes enxutas, que lidam com sobretrabalho e dificuldades na manutenção de equipamentos caros. Além disso, há um grande desafio relacionado à sustentabilidade financeira, já que os gastos não param de crescer, o que levou o estado a aumentar seu aporte para custeio de 40%, em 2017, para 50%, em 2024, cabendo o restante aos municípios.

O financiamento dos consórcios verticais na Bahia é baseado em um contrato de rateio proporcional ao número de habitantes de cada município consorciado. Atualmente, o estado da Bahia cobre 50% dos custos operacionais, enquanto os municípios arcam com os outros 50%. Esse modelo de cofinanciamento tem sido fundamental para viabilizar a operação das policlínicas regionais.

No entanto, a sustentabilidade financeira continua sendo um grande desafio. Os gastos dos consórcios têm crescido continuamente, impulsionados por fatores como a dificuldade de fixação de médicos especialistas, o aumento dos custos de manutenção de equipamentos e a diversificação dos serviços oferecidos. O estado aumentou, em 2024, o aporte de recursos, mas a tendência de crescimento dos custos permanece preocupante.

Para garantir a sustentabilidade financeira, será necessário repensar o modelo de atenção à saúde, evitando a reprodução de práticas curativistas, focadas na multiplicação de procedimentos diagnósticos e terapêuticos em detrimento de medidas de proteção da saúde.

É preciso fortalecer a atenção primária, aumentando sua efetividade por meio da qualificação de suas equipes, e investir em um modelo de atenção integral que combine promoção da saúde, prevenção de doenças e tratamento, reduzindo assim os custos a médio e longo prazo. Ao mesmo tempo, é fundamental regular o complexo econômico-financeiro da saúde, considerando os bens e insumos de saúde como de interesse público, de modo que os preços não sejam arbitrados exclusivamente pelas corporações empresariais.

Os consórcios verticais na Bahia têm impactado positivamente o acesso aos serviços de saúde, especialmente em regiões que anteriormente eram grandes vazios assistenciais. As policlínicas regionais geridas pelos consórcios oferecem serviços de média e alta complexidade, como consultas especializadas, exames diagnósticos e procedimentos terapêuticos, que antes eram escassos ou inexistentes em muitos municípios.

A expansão do acesso e do uso desses serviços foi acompanhada da redução das desigualdades entre as regiões. Com efeito, os consórcios contribuíram para aumentar a equidade na distribuição de serviços de saúde especializados no estado.

Com o início do funcionamento das policlínicas, os números de exames de tomografia e de ressonância magnética por mil habitantes, por exemplo, passaram a ser semelhantes no interior e na capital do estado.

Luís Eugênio Portela Fernandes de Souza, diretor do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Além disso, os serviços realizados pelas policlínicas contribuíram para melhorar a saúde das pessoas e reduzir os custos do sistema de saúde, tendo diminuído o número de internações por causas sensíveis à atenção ambulatorial

Vale ainda destacar que o impacto dos consórcios vai além do acesso, da equidade e melhoria da atenção à saúde. Eles também contribuem para o desenvolvimento econômico regional. Nosso estudo constatou o crescimento do comércio local após a implantação das policlínicas, em diferentes setores como alimentação, transporte e mesmo serviços privados de saúde.

Os consórcios verticais na Bahia enfrentam uma série de desafios que impactam sua operação e sustentabilidade. Um dos principais desafios é o financiamento. Os custos operacionais não param de crescer, pressionando os orçamentos municipais e estadual. Além disso, a Lei de Responsabilidade Fiscal impõe limites rígidos à contratação de pessoal e ao aumento das despesas com folha de pagamento, o que dificulta a expansão da equipe gestora dos consórcios e das equipes assistenciais das policlínicas.

Outro desafio importante é a manutenção dos equipamentos utilizados nas policlínicas. Muitos desses equipamentos são caros e de alta tecnologia, e suas manutenções corretivas e preventivas representam um custo significativo. A maioria das empresas fornecedoras ou que prestam serviços de manutenção tem sede fora da Bahia, o que aumenta os custos e as dificuldades logísticas. Uma alternativa, nesse caso, seria ampliar a escala do serviço, com o estado assumindo a responsabilidade pelo contrato da manutenção para todos os equipamentos dos 26 consórcios, ao invés de cada consórcio ter seu próprio contrato com as empresas.

Há também desafios relacionados à governança regional. Os consórcios têm seus próprios arranjos, com a assembleia de prefeitos, o conselho consultivo de secretários municipais e representantes regionais da secretaria estadual e a equipe gerencial.

Falta articulação com as comissões intergestores regionais e o planejamento regional integrado. Às vezes, os consórcios são vistos, pelos gestores municipais, como meros prestadores de serviços, sem terem o que dizer na conformação das redes de atenção à saúde.

Luís Eugênio Portela Fernandes de Souza, diretor do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Outro desafio se relaciona à regulação e à organização das filas de espera. Há relatos de problemas com o agendamento de consultas e exames, relativos ao clientelismo político também ao absenteísmo dos pacientes.

Por fim, as disputas políticas entre os municípios consorciados ou entre o município e o estado, especialmente em contextos de divergências partidárias, podem comprometer a cooperação necessária para o funcionamento eficiente dos consórcios.

Esses desafios precisam ser enfrentados para garantir que os consórcios cumpram seu papel de fortalecer as redes regionais de saúde e contribuir para a efetividade e a sustentabilidade do Sistema Único de Saúde.

Os consórcios verticais deram um passo fundamental no sentido da integração entre os diferentes níveis de atenção ao implantarem as policlínicas regionais, assegurando a oferta de serviços especializados onde eram escassos ou inexistentes. Essas policlínicas estabeleceram um elo efetivo entre a atenção básica e os serviços de média e alta complexidade. Mesmo com algumas falhas, os sistemas de regulação facilitam o encaminhamento dos pacientes da atenção primária para os serviços especializados, sendo fundamentais para garantir que os pacientes recebam o atendimento adequado no momento certo.

Além disso, os consórcios têm incentivado a articulação entre os diferentes atores envolvidos na gestão das redes de saúde, incluindo gestores estaduais, municipais e profissionais de saúde. Essa articulação é essencial para garantir que as políticas de saúde sejam implementadas de forma coordenada.

Falta, contudo, a participação organizada da sociedade civil que pode ajudar a alinhar a oferta de serviços às necessidades das populações locais.

Luís Eugênio Portela Fernandes de Souza, diretor do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Há um grande desafio relacionado à efetividade da atenção primária à saúde. Em muitos casos, os problemas que poderiam ser resolvidos na própria atenção básica acabam sendo encaminhados para as policlínicas, sobrecarregando esses serviços. Para superar esse desafio, é necessário fortalecer a atenção primária e melhorar sua capacidade de resolver problemas de saúde no nível local, qualificando e apoiando as equipes locais, inclusive por meio da telessaúde e de outras ferramentas da saúde digital.

Há também desafios relativos à regulação. Além de superar a persistência de práticas clientelistas, falta uma maior articulação entre as equipes da atenção básica e da atenção especializada, de modo que o referenciamento de usuários seja seguido do contrarreferenciamento, assegurando a continuidade do cuidado. Nesse aspecto, a implantação do prontuário eletrônico, acessível nos diversos pontos da rede de serviços de saúde, seria um passo importante.

Desde o início, o governo estadual assumiu uma posição de liderança, promovendo a ideia de policlínicas regionais geridas por consórcios interfederativos. Essa liderança foi decisiva para o sucesso da implantação dos consórcios, especialmente porque muitos municípios, especialmente os menores, não teriam condições de implementar esses serviços sozinhos.

O estado também desempenhou um papel essencial no financiamento dos consórcios, bancando a construção e a instalação das policlínicas, além de cobrir, inicialmente, 40% e depois 50 % dos custos operacionais. Esse apoio financeiro foi essencial para viabilizar a operação dos consórcios.

Além disso, o estado tem promovido a integração entre as diferentes esferas de governo por meio de políticas estaduais que incentivam a cooperação federativa. Essas políticas incluem a criação de leis que autorizam a formação dos consórcios, a definição de regras claras para sua operação e a instituição de um órgão de acompanhamento dos consórcios junto ao gabinete do governador.

O papel do estado, no entanto, não pode se limitar ao financiamento e à liderança inicial. É necessário que o governo estadual continue atuando como indutor e mediador para garantir que as redes regionais de saúde sejam verdadeiramente integradas e sustentáveis a longo prazo.

Luís Eugênio Portela Fernandes de Souza, diretor do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Para isso, é fundamental que o estado lidere a formulação e a implantação de projetos de desenvolvimento regional. O planejamento regional integrado pode vir a articular os investimentos em saúde com os investimentos em todo o leque de políticas públicas, como educação, transporte, energia renovável, indústria e comércio, etc. A Secretaria da Saúde do Estado da Bahia, em particular, precisa fortalecer suas instâncias regionais, haja vista que os atuais Núcleos Regionais de Saúde não têm estrutura suficiente para apoiar, de fato, a consolidação das regiões de saúde.

Os consórcios verticais têm um potencial enorme de contribuição para a superação do modelo curativista de atenção à saúde, que historicamente tem dominado o sistema de saúde no Brasil e no mundo. Esse modelo, centrado em consultas, exames e procedimentos especializados e hospitalares, ignora o processo de determinação social da saúde e negligencia as medidas de prevenção de doenças, resultando em custos crescentes sem melhoria significativa nas condições de vida e saúde da população.

Os consórcios podem ajudar a mudar essa lógica ao contribuir para a experimentação de um modelo de atenção integral que combine ações de promoção da saúde e prevenção e tratamento de doenças.

Por exemplo, as policlínicas regionais geridas pelos consórcios podem oferecer elas mesmas programas de educação em saúde, orientação nutricional e atividades de promoção do autocuidado.

Luís Eugênio Portela Fernandes de Souza, diretor do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Além disso, os consórcios podem fortalecer a articulação entre a atenção primária e os serviços especializados, garantindo que os pacientes recebam o atendimento no nível adequado de complexidade. Isso reduz a sobrecarga dos serviços especializados e melhora a efetividade da atenção primária, que é fundamental para resolver a maioria dos problemas de saúde.

A regulação do complexo econômico-financeiro da saúde, por sua vez, pode reorientá-lo no sentido de estimular a produção dos insumos necessários ao fortalecimento das ações de promoção da saúde e de prevenção de doenças, superando a lógica mercantilista que o leva a priorizar tecnologias meramente sintomáticas ou de uso contínuo.

Para que isso aconteça, é necessário investir em políticas econômicas e sociais que levem em consideração os determinantes sociais da saúde, que promovam a geração de postos de trabalho e a distribuição de renda, notadamente por meio da economia solidária, que melhorem as condições de saneamento ambiental e que combatam os efeitos das mudanças climáticas, etc.

Em uma breve síntese, as principais lições são as seguintes: (a) os consórcios verticais de saúde são instrumentos poderosos da expansão do acesso e da redução de desigualdades regionais, melhorando a situação de saúde da população; (b) o êxito da implantação de consórcios deve muito à ação das mais altas lideranças políticas e do aporte financeiro do estado; (c) a implantação dos consórcios pode contribuir para a boa governança regional, mas, por si mesmo, não é suficiente para isso, sendo importante fortalecer as instâncias regionais da secretaria estadual da saúde para avançar na regionalização e integrá-los às instâncias de pactuação do SUS com participação social; (d) a sustentabilidade financeira dos consórcios é uma questão não resolvida que, em última instância, demanda a superação do modelo curativista de atenção à saúde e a articulação intersetorial que oriente o planejamento integrado e promova o desenvolvimento regional.

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