Por Davi Carvalho

Nos dias 24 e 25 de fevereiro de 2025, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, sediou o Seminário Nacional de Consórcios Públicos e Regionalização do SUS. O evento reuniu gestores públicos, profissionais de saúde e pesquisadores para discutir o papel dos consórcios públicos na promoção da equidade e na organização regional dos serviços de saúde no Brasil. A programação incluiu a 1ª Mostra de Experiências, Práticas e Pesquisas Científicas de Consórcios Públicos de Saúde, além de painéis temáticos sobre inovação na gestão de saúde e governança regional.

As organizadoras Luciana Dias de Lima e Silvia Karla Azevedo Vieira Andrade concederam esta entrevista exclusiva sobre os desafios e perspectivas dos consórcios públicos de saúde no contexto da regionalização do Sistema Único de Saúde (SUS), com base nos resultados da Pesquisa Nacional de Consórcios Públicos de Saúde, apresentados no encontro.

Luciana Dias de Lima é pesquisadora titular e vice-diretora de Pesquisa e Inovação da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz). Com graduação em Medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutorado em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Luciana tem uma trajetória marcada por contribuições nas áreas de políticas públicas de saúde e governança do SUS.​

Silvia Karla Azevedo Vieira Andrade é professora do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e concluiu o pós doutorado em 2024 na ENSP/Fiocruz. Com doutorado em Saúde Coletiva pela UEL, Silvia tem experiência na área de políticas, planejamento e gestão em saúde, com ênfase regionalização do SUS, financiamento, regulação e consórcios públicos de saúde.

Luciana Dias de Lima: A pesquisa é fruto de projeto de pós-doutorado desenvolvido por Silvia Karla no âmbito do Programa de Pós-graduação em Saúde Pública da ENSP e financiado pelo Edital Inova Fiocruz. O estudo foi motivado pela necessidade de compreender melhor o papel dos consórcios públicos no Brasil, dada sua expansão significativa e diversidade de atuação ao longo dos anos.

Desde sua origem nos anos 1980, os consórcios passaram por diferentes ciclos de descentralização e regionalização do SUS. Entretanto, a regulamentação específica sobre consórcios públicos é de 2005. Atualmente, mesmo após a publicação da Portaria 2905/2022 do Ministério da Saúde, ainda há uma visão limitada sobre sua atuação e impacto, tornando essencial uma análise mais aprofundada sobre as diversas experiências existentes no país.

O estudo buscou realizar um grande diagnóstico sobre os consórcios públicos intermunicipais de saúde, sistematizando informações sobre estrutura, funcionamento e desafios, e fornecendo subsídios para o aprimoramento da governança interfederativa do SUS.

Silvia Karla: A pesquisa foi conduzida em duas fases. A primeira, realizada entre 2022 e 2023, que produziu um mapeamento abrangente dos consórcios públicos de saúde, identificando 297 consórcios atuando em todo o território nacional. O levantamento principal teve como instrumento um websurvey eletrônico, respondido pelos dirigentes dos consórcios nas cinco regiões do país, resultando em uma Série de Relatórios Executivos com quatro volumes, disponíveis no repositório Arcas da Fiocruz [link].

Na segunda fase, entrevistas com atores-chave aprofundaram as análises, permitindo uma visão abrangente da estrutura e funcionamento dos consórcios, oferecendo um panorama detalhado sobre sua relevância na organização regional da saúde.

Silvia Karla: Os consórcios públicos intermunicipais de saúde possuem caráter associativo e voluntário entre os entes federativos e estão distribuídos por todas as grandes regiões do Brasil. De acordo com a divisão geográfica regional adotada pelo IBGE em 2017 para embasar o planejamento e a gestão de políticas públicas, cerca de 81% das regiões geográficas imediatas possuem consórcios, assim como 96% das regiões intermediárias.

Além disso, esses arranjos estão presentes em áreas vulneráveis, como distritos sanitários indígenas, zonas de fronteira e o semiárido, além dos territórios de extrema pobreza. A maioria, 80%, é composta exclusivamente por municípios, enquanto 20% possuem participação estadual, refletindo o caráter descentralizado da governança e a forte presença da cooperação entre municípios como estratégia para a ampliação do acesso a serviços de saúde.

Ainda que previsto pela legislação, nenhum deles tem a União como ente consorciado até o momento. Cerca de 28% desses consórcios são multifinalitários e atuam de forma transversal congregando diferentes áreas de políticas públicas.

Silvia Karla: Nos anos de 1990 e nas décadas seguintes houve uma expansão significativa dos consórcios intermunicipais de saúde no Brasil e o número de municípios consorciados quadruplicou, mesmo antes de sua regulamentação, que se deu com a Lei Federal 11.107/2005 e o Decreto Federal 6.017/2007.

Atualmente, os 297 consórcios públicos de saúde reúnem 3.767 municípios, o que representa 68% do total de municípios no país. Considerando sua natureza autárquica, as ações e serviços realizados pelos consórcios são determinados pelo coletivo dos entes federativos consorciados, por meio do interessem comum. Com isso, ao longo do processo de regionalização do SUS, essas ações se diversificaram fortemente nos diferentes territórios, na medida de suas necessidades e especificidades regionais.

Esse aumento se deve, fundamentalmente, à necessidade de ampliação do acesso à saúde de forma integral nos pequenos municípios, que de outra forma, seriam inviáveis isoladamente.

Silvia Karla: A pesquisa identificou avanços e desafios institucionais. Entre os avanços, destacam-se a transformação da personalidade jurídica dos consórcios após a regulamentação federal em 2005 para autarquias públicas (considerando que 88% deles optaram por se tornarem público-públicos) e a reformulação dos contratos de consórcios, que foram ratificados por lei em todas as câmaras legislativas municipais.

Ocorreu ainda a ampliação dos programas de interesse comum e dos serviços oferecidos, abrangendo a atenção ambulatorial especializada, atenção à urgência e emergência, atenção pré-hospitalar e hospitalar, além de serviços de apoio à gestão municipal, como o transporte sanitário, contratação e capacitação de profissionais de saúde, oferta de serviços complementares para instrumentalizar a atenção básica, adoção de tecnologias de informação e telessaúde.

Outro avanço apurado pela pesquisa foi a disposição de procuradorias jurídicas, controladorias internas e serviços de contabilidade e licitação, gestão do trabalho e da educação em saúde.

Além disso, 95% dos consórcios possuem página eletrônica própria e conselho fiscal, reforçando a transparência e a regularidade fiscal junto aos Tribunais de Contas

Os desafios incluem a heterogeneidade na execução de serviços, baixa valorização das equipes técnicas gestoras dos consórcios, o impacto que os consórcios absorvem a partir das tensões políticas interfederativas locais, limitações no financiamento federal para as ações executadas e a persistência do mito do “quarto ente”, que distorce a compreensão das equipes de gestão do SUS sobre seu papel. A falta de reconhecimento como instrumento legítimo de cooperação federativa também limita seu potencial e dificulta sua plena incorporação nas estratégias de regionalização do SUS.

Silva Karla: Os consórcios públicos desempenham um papel estratégico na regionalização do SUS. Eles garantem a gestão compartilhada de serviços por meio de espaços de diálogo entre os diferentes entes federativos, permitindo que pequenos municípios tenham suas necessidades atendidas, resultando em uma melhor coordenação de esforços nas Macrorregiões de Saúde. Além disso, integram estratégias e políticas prioritárias como CAPS, CEO, SAMU, CER, PNAES, PlanificaSUS e centrais de regulação assistenciais.

Sua atuação possibilita a descentralização dos serviços de saúde, promovendo maior equidade no acesso, considerando as desigualdades regionais. Como instrumento de governança, os consórcios são essenciais para a articulação interfederativa e o fortalecimento das redes regionais, contribuindo para a implementação de políticas públicas e a melhoria da qualidade dos serviços prestados à população. Seu fortalecimento pode contribuir para o fortalecimento da regionalização do SUS, tornando-a mais eficiente e alinhada às necessidades territoriais.

Luciana Dias de Lima: A governança regional do SUS enfrenta desafios complexos, especialmente devido à interdependência federativa e à fragmentação das estruturas de gestão compartilhada. Os consórcios operam em um ambiente onde decisões e regulações frequentemente são definidas no nível nacional, enquanto a descentralização confere responsabilidades crescentes aos municípios, que dependem também da atuação e apoio dos governos estaduais.

As desigualdades na capacidade de provisão de serviços e as fragilidades político-institucionais sobrecarregam pequenas cidades, que dependem dos consórcios para organizar a atenção especializada

Além disso, há um descompasso entre as áreas de abrangência dos consórcios e as regiões de saúde do SUS, gerando dificuldades de coordenação. Muitas vezes, os consórcios funcionam paralelamente às políticas e estruturas estaduais e regionais do SUS, sem plena articulação.

Luciana Dias de Lima: A pesquisa revelou que 50% dos consórcios existentes no Brasil não coincidem com as regiões de saúde formalmente estabelecidas no SUS, o que cria dificuldades para o planejamento regional e coordenação das políticas. Além disso, apenas 1,2% dos consórcios participam regularmente das Comissões Intergestores Regionais (CIR), instância essencial para pactuação de políticas entre municípios e estados.

A participação em Comissões Intergestores Bipartite (CIB) também é deficitária, com apenas 15% dos consórcios envolvidos regularmente. Essas discrepâncias comprometem a capacidade dos consórcios de se articularem plenamente com as políticas regionais de saúde, limitando sua efetividade como instrumentos de governança cooperativa.

Luciana Dias de Lima: Os consórcios demonstram ser fundamentais para a regionalização do SUS, pois promovem ganhos de escala na aquisição de insumos e na organização da atenção especializada, especialmente para municípios de pequeno porte populacional. Eles formalizam a cooperação entre gestores municipais, permitindo um planejamento conjunto e a prestação de serviços de maior complexidade.

Contudo, persistem desafios, como a necessidade de maior integração com as estruturas estaduais e regionais do SUS e a definição de políticas direcionadas para a regionalização que incorporem a presença dos consórcios e reforcem a necessidade de articulação entre os diversos níveis de governo. O fortalecimento dos consórcios passa pelo reconhecimento de sua dupla dimensão: como instrumento organizativo para gestão de serviços de atenção especializada e para a ação cooperativa entre entes governamentais.

Luciana Dias de Lima: A sustentabilidade financeira dos consórcios ainda enfrenta instabilidades significativas. O contrato de rateio, principal mecanismo de financiamento entre os entes consorciados, apresenta grande variação: cerca de 39% dos consórcios têm uma parcela fixa para todos os municípios, enquanto 34% operam com rateio baseado em despesas. Contudo, não há um mecanismo padronizado e estável que garanta previsibilidade de recursos.

Além disso, a pesquisa identificou a ausência de fundos regionais estruturados, que permitam a gestão integrada de recursos para a atenção especializada. Modelos como o adotado no Ceará e Bahia, que utilizam parte do ICMS estadual para financiar policlínicas, surgem como alternativas inovadoras, mas ainda são exceções.

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