Em um mercado livre de Santiago do Chile, dona Rosa, 62 anos, revira caixas de frutas amassadas descartadas por supermercados. “É aqui que encontro o jantar”, diz, enquanto separa um punhado de maçãs machucadas. A cena, repetida em 82 países, revela uma contradição global: o mundo produz comida suficiente para alimentar 10 bilhões de pessoas — 2,5 bilhões de toneladas anuais —, mas 1 em cada 12 habitantes do planeta dorme com fome. O relatório do IPEA, Overcoming Food Security and Nutrition Roadblocks in Social Protection, desmonta essa equação e aponta: a fome não é falta de comida, mas de justiça.

O documento, fruto de colaboração entre o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e o Programa Mundial de Alimentos (WFP), mapeia os gargalos que transformam sistemas alimentares em armadilhas de exclusão. Com dados de 150 estudos e casos de 32 nações, o relatório vai além das estatísticas: expõe como desigualdades estruturais, crises climáticas e políticas públicas fragmentadas perpetuam a insegurança alimentar. “Não se trata de aumentar a produção, mas de redistribuir poder”, afirma Fábio Veras Soares, coordenador do estudo.

A Geografia da Fome no Século XXI


A análise revela que 40% da população latino-americana vive em insegurança alimentar moderada ou grave — um salto de 15% desde 2014. Na África Subsaariana, 239 milhões dependem de programas de alimentação escolar para terem uma refeição diária. O IPEA destaca que conflitos (como no Sudão) e desastres climáticos (enchentes na Colômbia) amplificam vulnerabilidades, mas alerta: mesmo em países estáveis, a pobreza estrutural mantém 1,2 bilhão na linha da insegurança. “Em regimes democráticos, a fome é uma escolha política”, diz o documento, citando cortes em políticas sociais no Brasil e México como fatores do aumento de 18% na desnutrição infantil desde 2019.

Políticas públicas no divã — o que funciona e o que falha


O relatório elogia programas como o Chile Crece Contigo , que reduziu a desnutrição infantil em 32% via integração de saúde, educação e transferência de renda. Porém, critica iniciativas mal desenhadas: o Bolsa Família no Brasil, após reformas em 2023, excluiu 3,7 milhões de famílias por critérios rígidos de elegibilidade. “Políticas eficazes exigem transversalidade”, afirma a equipe do IPEA, citando o exemplo do Peru, onde a compra de alimentos de agricultores familiares para merenda escolar triplicou a renda rural. O estudo também destaca o potencial de sistemas de cash transfers com condicionalidades flexíveis, como no Ghana, onde o LEAP 1000 elevou em 27% o consumo de proteínas entre beneficiários.

Clima, Agricultura e a Corrida Contra o Tempo


As projeções climáticas são devastadoras: até 2050, secas e inundações podem reduzir em 40% a produtividade de cultivos na América Central. O IPEA analisa casos como o do Ceará, onde sistemas de irrigação comunitária salvaram 120 mil hectares de terras áridas, mas alerta: apenas 7% dos pequenos agricultores têm acesso a tecnologias sustentáveis. O documento defende a agroecologia como estratégia de resiliência, citando o exemplo de Cuba, onde hortas urbanas supriram 70% das verduras de Havana após o colapso soviético. “Adaptar-se ao clima não é opção — é sobrevivência”, resume a equipe.

Cada 0,5°C de aquecimento global lança 50 milhões na fome. A agricultura sustentável não é ideologia, é protocolo de emergência.

Tecnologia, Dados e o Futuro da Alimentação


A última seção mergulha em inovações: do uso de IA para monitorar safras no México à blockchain que rastreia grãos na Índia. Um projeto no Senegal, usando drones para mapear solos, aumentou em 50% a eficiência de plantio. Porém, o IPEA alerta para a exclusão digital: 60% dos agricultores africanos desconhecem apps de previsão climática. “Tecnologia sem equidade é progresso incompleto”, diz o relatório, propondo investimentos em conectividade rural e capacitação. O documento também destaca o potencial de dietas baseadas em plantas para reduzir emissões — mas avisa: sem políticas de acesso, vegetarianismo será privilégio de elites.

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