Em um país com desigualdades regionais marcantes, os consórcios intermunicipais de saúde tornaram-se uma peça central na estruturação do Sistema Único de Saúde (SUS). Criados para ampliar o acesso aos serviços de média e alta complexidade, esses arranjos federativos enfrentam desafios contínuos relacionados à governança, financiamento e integração de políticas públicas. No entanto, à medida que se consolidam como parte da regionalização da saúde, surge um novo questionamento: como garantir que esses consórcios sejam sustentáveis no longo prazo e possam evoluir para atender a novas demandas?
A resposta passa, necessariamente, por inovação. Seja na busca por modelos de financiamento mais estáveis, no uso de tecnologia para otimizar a gestão ou na ampliação do escopo de atuação, a evolução dos consórcios depende de sua capacidade de adaptação. Como apontado no webinário Perspectivas em Regionalização do SUS: Consórcios Intermunicipais de Saúde, promovido pela Escola de Saúde Pública de Minas Gerais, o futuro desses arranjos está diretamente ligado à sua capacidade de sair da zona de conforto e explorar novos formatos de cooperação.
“O maior risco de um projeto em saúde é não correr risco nenhum. Permanecer na zona de conforto não é uma opção”, afirmou Ana Júlia Andrade Campos, diretora de Articulação de Consórcios Interfederativos da Secretaria Estadual de Saúde de Minas Gerais, destacando a necessidade de inovação na atuação consorciada.
Novos modelos de financiamento: o desafio da sustentabilidade
Os consórcios públicos operam em um cenário de incerteza orçamentária. Dependentes das contribuições dos municípios e, em alguns casos, de repasses estaduais e federais, esses arranjos enfrentam dificuldades para garantir estabilidade financeira e planejamento de longo prazo.
Atualmente, um dos principais desafios é a ausência de um modelo de financiamento perene. Essa imprevisibilidade orçamentária impacta diretamente a oferta de serviços, criando descontinuidade em programas essenciais para a população.
“Muitas vezes, os consórcios precisam lidar com recursos esporádicos e instáveis, o que prejudica sua capacidade de planejamento”.
Eduardo Grin, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e pesquisador de políticas públicas
Para superar essa fragilidade, alguns estados têm adotado mecanismos inovadores de arrecadação e gestão financeira. O Paraná, por exemplo, implementou um modelo de consorciamento para a aquisição e distribuição de medicamentos que permitiu maior previsibilidade de gastos. “A experiência do Paraná mostrou que, ao regionalizar a gestão de medicamentos, os municípios podem reduzir custos e garantir um abastecimento mais eficiente”, destacou Campos.
Outra proposta em debate é a criação de um fundo específico para consórcios, que garantiria aportes financeiros contínuos, reduzindo a dependência de transferências anuais dos municípios. Em Minas Gerais, esse modelo vem sendo discutido dentro da estratégia do programa Pró-Consórcio, que busca estruturar diretrizes de financiamento e governança para fortalecer os arranjos regionais.
Tecnologia e inovação na gestão consorciada
Além do financiamento, a modernização dos processos de gestão é um dos pilares para tornar os consórcios mais eficientes. O uso de tecnologias de informação e comunicação pode otimizar a administração dos serviços, melhorar a transparência e garantir um atendimento mais ágil à população.
Uma das inovações mais promissoras nesse sentido é o uso de plataformas digitais para a regulação do acesso aos serviços consorciados. “A digitalização dos processos pode reduzir a burocracia e melhorar o controle sobre os atendimentos prestados pelos consórcios”, explicou Grin. Ferramentas de inteligência artificial também vêm sendo testadas para otimizar a alocação de recursos e prever demandas futuras com base em dados epidemiológicos.
O setor de compras compartilhadas também se beneficiou da digitalização. Durante a pandemia de COVID-19, muitos consórcios utilizaram plataformas eletrônicas para a aquisição conjunta de insumos médicos, garantindo maior agilidade e transparência no processo.
“A experiência da pandemia mostrou que os consórcios podem ter um papel fundamental na resposta a crises sanitárias, mas para isso precisam estar tecnologicamente preparados”.
Ana Júlia Andrade Campos
Outra iniciativa em discussão é a telemedicina como ferramenta para ampliar a oferta de consultas especializadas nos municípios consorciados. Modelos já adotados em algumas regiões permitem que pacientes em pequenas cidades tenham acesso a especialistas por meio de atendimento remoto, reduzindo filas e deslocamentos desnecessários.
Expansão dos consórcios para além da saúde: o modelo multifinalitário
Embora tenham se consolidado como instrumentos para a gestão de serviços de saúde, os consórcios intermunicipais começam a se expandir para outras áreas da administração pública, como educação, meio ambiente e infraestrutura. Essa tendência aponta para um novo modelo de atuação, no qual os consórcios se tornam entidades multifinalitárias, capazes de coordenar políticas públicas de maneira integrada.
A Bahia e o Paraná já possuem experiências nesse sentido, utilizando consórcios para a gestão de resíduos sólidos e saneamento básico, por exemplo. Em Minas Gerais, essa abordagem começou a ser testada com a implementação do programa Farmacis, que regionaliza a distribuição de medicamentos básicos, reduzindo custos operacionais e melhorando a logística de abastecimento. “O Farmacis é um exemplo de como podemos expandir a atuação dos consórcios sem comprometer sua eficiência”, explicou Campos.
Essa diversificação pode representar um caminho para a sustentabilidade dos consórcios, garantindo novas fontes de financiamento e aumentando sua relevância para os municípios participantes. No entanto, especialistas alertam para a necessidade de garantir que essa ampliação ocorra de forma planejada e alinhada às demandas regionais. “A expansão dos consórcios para outras áreas precisa ser feita com cautela, para evitar que a sobrecarga de funções comprometa a qualidade dos serviços prestados”, pontuou Grin.
O futuro dos consórcios no SUS: desafios e oportunidades
Os consórcios intermunicipais se tornaram uma peça-chave na estruturação da saúde pública no Brasil, permitindo que pequenos municípios tenham acesso a serviços especializados e garantindo maior eficiência na alocação de recursos. No entanto, para que esse modelo se fortaleça no longo prazo, é fundamental investir em inovação, tanto na gestão financeira quanto na ampliação de suas funções.
A criação de mecanismos de financiamento mais previsíveis, o uso de tecnologia para otimizar processos e a possibilidade de atuação multifinalitária são algumas das direções que podem garantir a sustentabilidade dos consórcios nos próximos anos. Ao mesmo tempo, será necessário superar desafios como a resistência política à cooperação regional, a falta de transparência em algumas dessas estruturas e a dificuldade de pactuação de recursos entre os entes participantes.
“O consórcio é uma ferramenta, mas ele só funciona se os municípios realmente entenderem seu potencial e souberem utilizá-lo da forma correta”, resumiu Campos.
À medida que o SUS avança na sua regionalização, os consórcios terão um papel cada vez mais estratégico na gestão da saúde pública no Brasil. O sucesso dessa empreitada dependerá da capacidade dos gestores de adaptar esses arranjos às novas realidades e garantir que a inovação se torne parte da cultura desses organismos, permitindo que eles se consolidem como instrumentos eficazes de fortalecimento da saúde e do desenvolvimento regional.