Nos corredores das secretarias de saúde e nas assembleias municipais, a expansão dos consórcios públicos é frequentemente citada como uma solução estratégica para a descentralização e regionalização do Sistema Único de Saúde (SUS). No entanto, enquanto esse modelo avança, desafios complexos emergem na governança, no financiamento e na articulação entre municípios e estados. O que deveria ser um instrumento de integração e fortalecimento da saúde pública, em alguns casos, torna-se um nó burocrático difícil de desatar.
O debate sobre os desafios na gestão dos consórcios intermunicipais de saúde ganhou centralidade durante o webinário Perspectivas em Regionalização do SUS: Consórcios Intermunicipais de Saúde, promovido pela Escola de Saúde Pública de Minas Gerais. Especialistas, gestores públicos e pesquisadores expuseram as barreiras que dificultam a consolidação desse modelo e as tensões entre cooperação federativa e autonomia municipal.
Entre as questões levantadas, a sobreposição de políticas, a dificuldade na pactuação de recursos e a resistência política à cooperação entre municípios despontam como entraves para o fortalecimento desse modelo. Além disso, o problema da responsabilização jurídica e a falta de transparência no controle social dos consórcios demonstram que, apesar dos avanços, ainda há um longo caminho para que essa estratégia se torne plenamente eficaz.
A fragmentação da regionalização e os conflitos entre entes federativos
A regionalização da saúde pressupõe a organização dos serviços por territórios, garantindo acesso equitativo aos atendimentos de média e alta complexidade. No entanto, os consórcios nem sempre acompanham essa lógica territorial. Em muitos casos, municípios se agrupam por afinidades políticas ou estratégicas, sem que isso necessariamente reflita as necessidades assistenciais da população.
“O Estado fomenta o consórcio ou o município sozinho assume essa responsabilidade, mas não necessariamente os dois processos estão alinhados. E aí surgem duplicidades e sobreposições de serviços, o que compromete a racionalidade do sistema”, observou Ana Júlia Andrade Campos, diretora de Articulação de Consórcios Interfederativos da Secretaria Estadual de Saúde de Minas Gerais.
Em Minas Gerais, por exemplo, há casos em que um mesmo território é atendido simultaneamente por um consórcio intermunicipal e por programas estaduais independentes. Essa desarticulação pode gerar concorrência entre diferentes estruturas de gestão, dificultando a alocação eficiente de recursos.
“O consórcio deve suprir a necessidade do território, mas o que vemos é ele oferecendo o que é mais fácil de ser implementado, e não necessariamente o que a região precisa”.
Ludmila Diniz, especialista em regulação da Secretaria de Saúde do estado
No caso da Bahia, a implementação das policlínicas regionais demonstrou que a alocação de recursos estaduais pode ser um fator decisivo para evitar essas sobreposições. O modelo adotado no estado prevê que os municípios consorciados recebam suporte financeiro do governo estadual, garantindo que os serviços sejam planejados de forma coordenada. Esse arranjo minimiza os conflitos de governança e evita o surgimento de estruturas paralelas de atendimento.
O desafio da pactuação financeira e a sustentabilidade dos consórcios
Outro grande obstáculo para os consórcios é a definição das responsabilidades financeiras de cada município participante. Diferentes capacidades fiscais e prioridades políticas dificultam a pactuação de um modelo sustentável de financiamento, o que pode levar à fragilidade da estrutura consorciada.
A experiência brasileira demonstra que municípios de maior porte tendem a assumir maior protagonismo dentro dos consórcios, enquanto os menores, muitas vezes, enfrentam dificuldades para manter suas contribuições. Essa assimetria financeira pode gerar tensões dentro do grupo, dificultando a continuidade dos serviços. “Municípios ponderam custos e benefícios antes de aderirem a um consórcio. Se não virem vantagens claras, podem decidir atuar de forma isolada, prejudicando a viabilidade do modelo”, explicou.
A estrutura de financiamento dos consórcios também enfrenta desafios no repasse de verbas estaduais e federais. Enquanto alguns estados estabelecem mecanismos de cofinanciamento, outros deixam essa responsabilidade exclusivamente para os municípios. Isso impacta diretamente a previsibilidade orçamentária, dificultando investimentos de longo prazo.
“A baixa responsabilização dos entes federativos compromete a estabilidade dos consórcios. Muitas vezes, há transferências de recursos sem exigência de resultados concretos, o que desincentiva a manutenção dessas estruturas”.
Eduardo Grin, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e pesquisador de políticas públicas.
Em resposta a esse problema, algumas iniciativas inovadoras vêm sendo adotadas para garantir a sustentabilidade financeira dos consórcios. O Paraná, por exemplo, implementou um modelo de consorciamento para aquisição de medicamentos que permite a redução de custos operacionais e maior previsibilidade de gastos. Essa experiência vem sendo estudada por outros estados como alternativa para minimizar as dificuldades de financiamento.
Responsabilidade jurídica e transparência: quem responde pelo consórcio?
Os consórcios públicos operam como associações de municípios, mas não são entes federativos independentes. Isso levanta uma questão central: em caso de falhas na prestação de serviços ou danos causados aos usuários do SUS, quem é juridicamente responsável?
A resposta, segundo especialistas, não é trivial. “A responsabilidade recai sobre o prefeito presidente do consórcio e sobre o conselho diretor, que é composto pelos prefeitos dos municípios consorciados”, esclareceu Campos. No entanto, essa estrutura de responsabilização solidária pode gerar insegurança jurídica, especialmente quando há trocas de gestão municipal. Prefeitos que não participaram da criação do consórcio podem questionar a validade dos compromissos assumidos por seus antecessores, levando a um cenário de instabilidade.
Além disso, a transparência e o controle social ainda são desafios na gestão dos consórcios. “Os consórcios, em geral, são muito pobres em informação pública. Suas páginas na internet não são atualizadas, e o cidadão não sabe a quem recorrer quando precisa de assistência ou deseja registrar uma queixa”, apontou Grin.
Essa falta de transparência pode comprometer a credibilidade dos consórcios e dificultar a fiscalização de suas atividades. A criação de mecanismos de auditoria e prestação de contas mais eficazes é vista como essencial para garantir a legitimidade dessas estruturas e fortalecer sua integração ao SUS.
A resistência política e o futuro dos consórcios no Brasil
Além das dificuldades técnicas e financeiras, a resistência política à cooperação intermunicipal continua sendo um fator limitante para a expansão dos consórcios. Prefeitos de municípios maiores, por vezes, resistem à ideia de compartilhar recursos e responsabilidades com cidades menores, temendo perda de autonomia e influência política.
Essa dinâmica, conhecida na literatura como a “Síndrome do Primo Rico”, tem sido observada em diversas regiões do país e dificulta a implementação de políticas regionais. “Os consórcios deveriam ser espaços de cooperação, mas, em algumas situações, acabam sendo arenas de disputa por recursos e influência”, destacou Grin.
Apesar desses desafios, o modelo consorciado continua sendo uma peça fundamental para a regionalização da saúde no Brasil. A experiência de estados como Minas Gerais, Bahia e Paraná demonstra que, quando bem estruturados, os consórcios podem superar as barreiras da fragmentação territorial e ampliar o acesso da população aos serviços de saúde.
Para que esse avanço ocorra de forma consolidada, especialistas apontam a necessidade de aprimorar os mecanismos de governança, garantir financiamento estável e reforçar a transparência. Sem esses ajustes, o potencial dos consórcios para fortalecer o SUS pode continuar sendo prejudicado por falhas estruturais e disputas políticas.
O caminho para uma gestão mais eficiente e equitativa dos consórcios passa, portanto, pelo fortalecimento da cooperação federativa, sem comprometer a autonomia municipal. A construção desse equilíbrio será determinante para o futuro da regionalização da saúde no Brasil.