No cenário fragmentado da saúde pública brasileira, os consórcios intermunicipais emergem como uma ferramenta estratégica para a regionalização do Sistema Único de Saúde (SUS). Com milhares de municípios espalhados por um território vasto e desigual, a cooperação entre entes federativos tem se mostrado essencial para ampliar o acesso a serviços médicos de média e alta complexidade.
Essa estrutura federativa, entretanto, apresenta desafios estruturais. A descentralização do SUS, prevista na Constituição de 1988, garantiu autonomia aos municípios na gestão da atenção básica, mas revelou dificuldades na provisão de serviços de maior complexidade. Diante desse cenário, os consórcios públicos passaram a ocupar um espaço intermediário, funcionando como uma solução para organizar a oferta de serviços de saúde e garantir que pequenas cidades tenham acesso a equipamentos, especialistas e logística adequada.
O modelo não é novo, mas sua expansão e reconfiguração nos últimos anos evidenciam a necessidade de aprofundar o debate sobre sua efetividade e sustentabilidade. Minas Gerais, estado com o maior número de municípios do Brasil, tem sido um dos principais laboratórios dessa experiência, enquanto estados como Bahia e Paraná implementam estratégias para fortalecer a regionalização por meio dos consórcios.
Expansão e fortalecimento do modelo consorciado
O crescimento dos consórcios públicos foi impulsionado pela Lei nº 11.107/2005, que regulamentou essa forma de cooperação federativa, conferindo segurança jurídica às associações municipais. A partir desse marco legal, houve um aumento expressivo no número de municípios consorciados, sobretudo na área da saúde. Segundo dados apresentados no webinário Perspectivas em Regionalização do SUS: Consórcios Intermunicipais de Saúde, promovido pela Escola de Saúde Pública de Minas Gerais, mais de 3.200 municípios brasileiros participam atualmente de algum consórcio na área da saúde.
Em Minas Gerais, 92% do território está coberto por consórcios públicos, o que demonstra a capilaridade dessa estratégia.
“Hoje, a gente já tem um arcabouço jurídico muito bem estabelecido sobre consórcio, sobre a possibilidade de usar consórcio em várias áreas da saúde”.
Ana Júlia Andrade Campos, diretora de Articulação de Consórcios Interfederativos da Secretaria Estadual de Saúde de Minas Gerais.
A Bahia também implementou um modelo robusto de consorciamento para a gestão de policlínicas regionais, garantindo acesso a exames e consultas especializadas para pequenos municípios que, isoladamente, não teriam capacidade para manter essa infraestrutura. “As policlínicas organizadas na Bahia têm um diagnóstico de necessidades muito bem feito e conseguem atender tanto pequenas cirurgias quanto consultas especializadas”, destacou Eduardo Grin, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e pesquisador de políticas públicas.
A experiência do Paraná também foi citada como referência no uso de consórcios para aquisição e distribuição de medicamentos básicos. “A gente foi lá, visitou, e adaptamos o projeto deles para poder ser aplicado em Minas Gerais”, relatou Campos, destacando a importância da troca de experiências entre estados.
Consórcios e a lógica de economia de escala
Entre os principais argumentos a favor dos consórcios está a capacidade de gerar economia de escala. Pequenos municípios enfrentam dificuldades para adquirir medicamentos e equipamentos médicos a preços competitivos. Ao se associarem em consórcios, conseguem negociar compras conjuntas, reduzindo custos e aumentando a capacidade de atendimento.
Além das compras compartilhadas, os consórcios permitem que municípios dividam estruturas hospitalares, ampliem a oferta de transporte sanitário e organizem a distribuição de profissionais de saúde de forma mais eficiente. “O benefício vai ser sempre muito superior ao custo, mas eu preciso, às vezes, simular isso”, pontuou Grin.
“Por exemplo, qual seria o ganho se tivéssemos uma compra coletiva de medicamentos em vez de cada município comprar separadamente?”
Eduardo Grin, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e pesquisador de políticas públicas.
Durante a pandemia de COVID-19, essa lógica foi fundamental para viabilizar a aquisição de insumos essenciais, como anestésicos e equipamentos de proteção individual. “Os municípios que atuaram de maneira consorciada tiveram indicadores de enfrentamento à COVID-19 muito mais positivos do que aqueles que não o fizeram”, destacou Grin, citando um estudo que demonstrou menor mortalidade nos municípios que operaram por meio de consórcios2.
A governança e os desafios na implementação
Se, por um lado, os consórcios oferecem ganhos em eficiência, por outro, sua implementação exige um alto nível de coordenação intergovernamental. A regionalização da saúde e os consórcios nem sempre seguem uma delimitação territorial homogênea, o que pode gerar sobreposições de serviços e dificuldades na pactuação de recursos.
Em Minas Gerais, por exemplo, existem consórcios que atuam em mais de uma macrorregião de saúde, criando desafios na integração dos serviços.
“Os consórcios devem suprir a necessidade do território, mas o que vemos, muitas vezes, é o consórcio oferecendo aquilo que é mais fácil para ele, e não necessariamente o que a região precisa”.
Ludmila Diniz, da Secretaria de Saúde de Minas Gerais.
Outro desafio apontado é a questão da responsabilização. Como os consórcios envolvem múltiplos municípios, há dúvidas sobre a quem cabe a responsabilidade por eventuais falhas na prestação de serviços. “Quem responde é o prefeito presidente do consórcio, de forma solidária com todos os demais prefeitos consorciados”, explicou Campos.
Além disso, a sustentabilidade financeira dos consórcios ainda é um ponto sensível. Apesar da economia de escala, os municípios frequentemente enfrentam dificuldades para arcar com os custos de manutenção dessas estruturas. Modelos de financiamento híbridos, combinando recursos federais, estaduais e municipais, têm sido discutidos para garantir a viabilidade dessas iniciativas no longo prazo.
O futuro dos consórcios públicos no SUS
Os consórcios intermunicipais representam um dos principais instrumentos de fortalecimento da regionalização do SUS, permitindo que pequenos municípios ampliem sua capacidade de atendimento e reduzam desigualdades no acesso à saúde. No entanto, sua efetividade depende da construção de mecanismos de governança que garantam planejamento, transparência e coordenação entre os diferentes níveis de gestão.
Para especialistas, o futuro dos consórcios passa pela inovação e adaptação a novas realidades. “O maior risco de um projeto em saúde é não correr risco nenhum. Permanecer na zona de conforto não é uma opção”, afirmou Campos, destacando a necessidade de repensar continuamente o papel dos consórcios na estrutura do SUS.
À medida que mais municípios adotam esse modelo, os desafios de governança, financiamento e integração de serviços tornam-se cada vez mais evidentes. O sucesso da regionalização dependerá da capacidade de estados e municípios trabalharem de forma conjunta, superando resistências políticas e garantindo que a lógica da cooperação prevaleça sobre a da concorrência.
Os avanços obtidos até aqui indicam que os consórcios têm potencial para transformar a gestão da saúde pública no Brasil, mas sua consolidação requer um esforço contínuo de aperfeiçoamento e coordenação entre os entes federativos.