Por Davi Carvalho

Num Brasil de profundas contradições, onde saúde e política caminham em terrenos desiguais, as emendas parlamentares tornaram-se um tema central para entender as engrenagens que movem o Sistema Único de Saúde (SUS). A Plataforma Região e Redes conversou com o Gabriel Vieira Mandarino, professor visitante no Departamento de Administração Pública da Universidade Federal de Lavras (UFLA), que lançou em janeiro de 2025 o estudo “Trajetória das Emendas Parlamentares em Saúde e Participação nas Despesas Municipais em Saúde”, pelo think tank Transforma, vinculado ao Instituto de Economia da Unicamp. 

Mandarino não economiza argumentos ao expor a dualidade das emendas parlamentares: essenciais para muitos municípios, mas reféns de interesses políticos que muitas vezes desvirtuam suas finalidades. Ao lado de Clara Saliba, economista e mestranda pelo Instituto de Economia da Unicamp, ele revela no estudo as nuances de um sistema que distribui recursos em meio a um jogo de forças marcado por desigualdades regionais e pressões partidárias.

Mas a conversa vai além das cifras e dos gráficos. Mandarino reflete sobre o impacto humano dessas escolhas – do gestor municipal que luta para manter um hospital funcionando à enfermeira que depende de equipamentos comprados com recursos esparsos. A nota técnica propõe caminhos ousados: mais transparência, critérios técnicos robustos e a integração das emendas no planejamento estratégico do SUS. A questão que ecoa no ar é clara: como transformar uma prática política em um motor real de justiça social na saúde?

Como as emendas parlamentares evoluíram ao longo do tempo no Brasil, especificamente em relação à área da saúde, e qual é o impacto histórico dessa prática no financiamento do SUS?

Gabriel Vieira Mandarino: As emendas parlamentares desempenham um papel relevante no financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS), refletindo a evolução histórica do sistema político e orçamentário brasileiro. Originalmente, as emendas nasceram como um mecanismo para que os parlamentares pudessem direcionar recursos federais para atender demandas regionais específicas, contribuindo para o fortalecimento de sua base política. No entanto, a consolidação do SUS a partir de 1988 trouxe um novo desafio: como integrar essas emendas de maneira eficaz ao financiamento descentralizado da saúde pública.

Essa descentralização permitiu que estados e municípios assumissem responsabilidades crescentes na execução das políticas de saúde, mas criou também um cenário em que as emendas passaram a ser vistas como uma forma de suprir lacunas nos orçamentos locais.

A Emenda Constitucional 86/2015, que tornou obrigatória a execução das emendas individuais, marcou um ponto de inflexão. Ela estabeleceu que uma parte fixa do orçamento deveria ser destinada a emendas, sendo que metade deveria ser alocada obrigatoriamente na saúde. Isso ampliou significativamente a importância dessas transferências para os municípios, especialmente os de pequeno porte, que muitas vezes dependem desses recursos para ações essenciais, como compra de equipamentos e manutenção de unidades básicas.

Por outro lado, a natureza episódica e por vezes fragmentada das emendas criou desafios para o planejamento de longo prazo no SUS. Enquanto algumas emendas são usadas para investimentos estruturais, outras atendem demandas pontuais que não necessariamente refletem as prioridades locais ou nacionais de saúde. Assim, embora as emendas tenham contribuído para reforçar o financiamento da saúde, elas também expõem a necessidade de maior alinhamento entre o planejamento estratégico do SUS e os interesses políticos que determinam sua aplicação.

Quais são os critérios utilizados para a distribuição das emendas parlamentares entre os municípios e como isso impacta a equidade no acesso aos recursos de saúde?

Mandarino: A distribuição das emendas parlamentares no Brasil não segue critérios uniformes ou exclusivamente técnicos, sendo fortemente influenciada por fatores políticos, relações interpessoais e estratégias eleitorais. De forma geral, os parlamentares utilizam suas emendas como instrumentos para beneficiar suas bases eleitorais, priorizando municípios onde possuem maior capital político ou onde pretendem ampliar sua influência. Isso cria um sistema de alocação que nem sempre está alinhado às reais necessidades de saúde das populações locais.

A Emenda Constitucional 86/2015 introduziu certa previsibilidade ao estabelecer a obrigatoriedade de execução orçamentária das emendas individuais, mas ainda assim não garantiu um critério técnico para a escolha dos municípios beneficiados.

Na prática, os recursos são muitas vezes distribuídos de forma pulverizada, atendendo demandas pontuais que refletem mais interesses políticos do que as prioridades de saúde pública

Municípios pequenos ou com menor capacidade administrativa frequentemente dependem de articulações políticas para assegurar acesso a esses recursos, ficando em desvantagem em relação a municípios com maior influência política ou maior proximidade com parlamentares.

O impacto na equidade é significativo. A falta de critérios claros e universais para a alocação das emendas perpetua desigualdades regionais, especialmente em áreas mais pobres e menos desenvolvidas. Municípios em situação de maior vulnerabilidade social e com maiores carências estruturais frequentemente recebem menos recursos do que o necessário, enquanto outros, com menor necessidade relativa, podem ser privilegiados. No entanto, há casos em que os valores per capita das emendas em determinados municípios pobres são bastante elevados, o que pode indicar distorções na distribuição dos recursos.

Embora algumas iniciativas tenham buscado vincular a alocação das emendas a indicadores de necessidade, como dados epidemiológicos ou socioeconômicos, a implementação prática dessas medidas ainda enfrenta resistência política. Assim, a distribuição atual contribui para aprofundar desigualdades no acesso a serviços de saúde, evidenciando a necessidade urgente de um modelo mais técnico, transparente e orientado pelas demandas reais da população.

Em que medida a alocação de emendas parlamentares reflete interesses políticos e partidários, e não necessariamente as necessidades reais de saúde da população?

Mandarino: A alocação de emendas parlamentares no Brasil é amplamente permeada por interesses políticos e partidários, muitas vezes se sobrepondo às reais necessidades de saúde da população. Esse fenômeno reflete a natureza clientelista da política brasileira, em que as emendas são usadas como uma ferramenta para consolidar bases eleitorais, fortalecer alianças políticas e atender compromissos com lideranças locais. Como resultado, os critérios técnicos de necessidade frequentemente ficam em segundo plano.

Os parlamentares têm significativa autonomia na escolha dos municípios e iniciativas que serão beneficiados pelas emendas, o que permite que fatores como proximidade eleitoral, reciprocidade política e interesses estratégicos influenciem diretamente as decisões. Por exemplo, emendas podem ser direcionadas a municípios onde o parlamentar possui maior número de eleitores ou mantém alianças com prefeitos e vereadores, mesmo que esses locais apresentem menor demanda em termos de indicadores de saúde.

Muitos projetos financiados pelas emendas são de natureza pontual, como a aquisição de equipamentos ou reformas específicas, sem considerar as necessidades estruturais e de longo prazo da saúde pública local.

Esse cenário é exacerbado pela dinâmica partidária e pelas negociações no Congresso Nacional. Emendas parlamentares são frequentemente usadas como moeda de troca para obter apoio em votações importantes ou como forma de premiar aliados do governo. Essa prática, embora faça parte do jogo político, contribui para um sistema de alocação de recursos fragmentado e pouco eficiente, prejudicando a equidade no acesso à saúde.

Embora existam iniciativas para mitigar a influência política, como a exigência de que parte das emendas seja destinada obrigatoriamente à saúde, a falta de alinhamento entre a alocação e as prioridades nacionais do SUS continua sendo um desafio. Isso evidencia a necessidade de maior regulamentação e transparência no processo, de modo a garantir que os recursos públicos sejam utilizados prioritariamente para atender às reais demandas da população.

Como as emendas parlamentares afetam a autonomia dos gestores municipais na alocação de recursos e no planejamento das políticas públicas de saúde?

Mandarino:As emendas parlamentares exercem um impacto significativo sobre a autonomia dos gestores municipais no planejamento e na execução de políticas públicas de saúde. Embora sejam uma fonte importante de recursos financeiros, especialmente para municípios com baixa arrecadação própria, a forma como são alocadas e utilizadas pode limitar a capacidade dos gestores locais de definir prioridades estratégicas baseadas nas necessidades reais da população.

Um dos principais problemas é que as emendas, em sua maioria, são vinculadas a projetos específicos e determinados previamente pelos parlamentares, muitas vezes sem diálogo ou consulta efetiva com os gestores locais. Isso significa que os recursos provenientes das emendas podem não estar alinhados com o planejamento municipal de saúde, obrigando os gestores a adaptar suas ações para atender aos critérios estabelecidos pelos parlamentares. Essa falta de flexibilidade pode levar a desequilíbrios, como o investimento em obras ou equipamentos que não são prioritários, enquanto demandas urgentes, como a contratação de profissionais de saúde ou manutenção de serviços, permanecem desassistidas.

Outro fator que influencia a autonomia dos gestores é o caráter episódico das emendas parlamentares. Como os recursos não são garantidos de forma contínua, mas dependem da articulação política e do ciclo orçamentário federal, torna-se difícil para os municípios incorporar esses valores em um planejamento de longo prazo. Essa imprevisibilidade compromete a sustentabilidade das ações de saúde, forçando os gestores a buscarem soluções de curto prazo e limitando a implementação de políticas estruturais.

Além disso, a dependência de articulações políticas para obtenção de emendas coloca os gestores municipais em uma posição de vulnerabilidade. Municípios com menor capacidade de influência política ou menor acesso aos parlamentares frequentemente recebem menos recursos, agravando as desigualdades regionais e comprometendo a universalidade e a equidade preconizadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Embora as emendas parlamentares possam complementar o orçamento municipal e suprir lacunas específicas, o modelo atual reforça a necessidade de maior coordenação entre os entes federados. Um alinhamento mais efetivo entre os objetivos das emendas e as prioridades locais poderia fortalecer a autonomia dos gestores, permitindo que as emendas sejam um instrumento para a melhoria da saúde pública, e não um obstáculo ao planejamento estratégico municipal.

As emendas parlamentares contribuem para reduzir ou ampliar as desigualdades regionais no acesso a serviços de saúde? Você pode citar exemplos?

Mandarino:As emendas parlamentares, apesar de seu potencial para diminuir disparidades, frequentemente acabam ampliando as desigualdades regionais no acesso a serviços de saúde devido à sua lógica de distribuição e aplicação. Em teoria, esses recursos poderiam ser direcionados para localidades mais vulneráveis, equilibrando as disparidades regionais no acesso e na qualidade da assistência à saúde. Na prática, entretanto, o sistema está frequentemente pautado por interesses políticos, beneficiando regiões ou municípios com maior proximidade aos parlamentares.

Em muitos casos, municípios pequenos e economicamente vulneráveis enfrentam dificuldades para acessar emendas devido à menor capacidade de articulação política. Por outro lado, municípios economicamente mais favorecidos ou com alta densidade eleitoral tendem a ser priorizados nas alocações, independentemente de sua situação socioeconômica ou necessidades específicas.

Desembarque de paciente no hospital de campanha Lagoa-Barra, no Rio de Janeiro, montado no início da pandemia. Allan Carvalho / AGIF / AFP
Foto: OPAS
Foto: Araquém Alcântara
Foto: Araquém Alcântara
Foto: Radilson Carlos Gomes

Um exemplo comum dessa dinâmica pode ser observado em municípios que recebem recursos para aquisição de equipamentos sofisticados de saúde, mas que não têm infraestrutura ou equipe técnica para operá-los. Assim, enquanto os recursos são formalmente destinados à saúde, sua aplicação efetiva pode ser limitada, e as desigualdades acabam sendo mantidas ou ampliadas. Além disso, regiões que enfrentam crises crônicas de saúde, como as do Norte e Nordeste, frequentemente não recebem o apoio proporcional às suas necessidades em comparação com estados do Sul e Sudeste.

Em contrapartida, há iniciativas pontuais em que as emendas contribuem para a redução de desigualdades, como em programas de saneamento básico ou ampliação de unidades básicas de saúde em áreas rurais ou periféricas. No entanto, essas ações ainda são a exceção, não a regra, e dependem muito mais da visão dos parlamentares individuais do que de uma estratégia coordenada.

Portanto, para que as emendas parlamentares cumpram um papel mais efetivo na redução das desigualdades regionais, seria necessário estabelecer critérios técnicos e transparentes para sua distribuição. Além disso, a implementação de mecanismos de monitoramento e avaliação poderia garantir que os recursos cheguem às localidades que mais necessitam, promovendo uma maior equidade no sistema de saúde.

Quais mecanismos de transparência e controle social existem para monitorar o uso das emendas parlamentares na saúde? Eles são eficazes?

Mandarino: Os mecanismos de transparência e controle social para monitorar o uso das emendas parlamentares na saúde existem, mas apresentam limitações significativas que comprometem sua eficácia. Em tese, as emendas estão sujeitas às mesmas regras de prestação de contas e fiscalização aplicáveis a outros recursos públicos, como a obrigatoriedade de registro em portais de transparência e a supervisão por órgãos de controle, como o Tribunal de Contas da União (TCU) e Controladorias locais. No entanto, a aplicação prática desses mecanismos enfrenta desafios.

Além disso, os Conselhos Municipais de Saúde, que são instâncias de controle social previstas pela legislação do SUS, têm a prerrogativa de monitorar e fiscalizar a aplicação desses recursos em nível local. Esses conselhos, compostos por representantes do governo, trabalhadores de saúde e usuários, desempenham um papel crucial na verificação da execução das políticas públicas de saúde.

Entretanto, a eficácia desses instrumentos é limitada por diversos fatores. A falta de clareza e detalhamento nos registros sobre a aplicação dos recursos dificulta a análise completa do impacto das emendas. Muitas vezes, as informações disponibilizadas não são atualizadas ou acessíveis para o público em geral, o que compromete a transparência e impede um controle social efetivo. Há mudanças anuais também na maneira como se contabilizam as emendas, dificultando o acompanhamento e evolução ano a ano.

Os Conselhos Municipais de Saúde frequentemente enfrentam limitações estruturais, como falta de capacitação de seus membros, recursos insuficientes e baixa participação popular, o que reduz sua capacidade de fiscalização.

Outro ponto crítico é a falta de indicadores específicos para medir os resultados das emendas parlamentares. Sem métricas claras de desempenho ou impacto, é difícil avaliar se os recursos estão sendo utilizados de maneira eficiente e em conformidade com as prioridades de saúde pública. Isso cria um ambiente propício para o uso inadequado ou ineficaz dos recursos, dificultando a responsabilização.

Em suma, embora existam mecanismos formais de transparência e controle social, eles não têm se mostrado suficientemente eficazes para garantir que as emendas parlamentares sejam aplicadas de forma equitativa, eficiente e alinhada às necessidades da população. Fortalecer esses instrumentos, com maior investimento em capacitação, tecnologia e participação social, é essencial para aprimorar a gestão e fiscalização das emendas parlamentares na saúde.

Qual é a participação das emendas parlamentares no total das despesas municipais de saúde, e há risco de dependência excessiva desses recursos?

Mandarino: As emendas parlamentares desempenham um papel relevante no financiamento das despesas municipais de saúde, especialmente em municípios menores. Em muitos casos, essas transferências representam uma fração importante do orçamento de saúde, complementando as transferências regulares do Sistema Único de Saúde (SUS) e, ocasionalmente, cobrindo lacunas deixadas pela insuficiência de recursos próprios ou transferências estaduais.

No entanto, essa dependência de emendas parlamentares pode se tornar um risco significativo para os municípios, principalmente para aqueles com menor capacidade arrecadatória e maior vulnerabilidade econômica. Isso ocorre porque as emendas não são recursos permanentes e previsíveis; sua disponibilidade depende da aprovação do orçamento anual e da articulação política dos gestores locais com parlamentares. Esse caráter episódico e condicionado dificulta o planejamento de médio e longo prazo e pode levar os municípios a uma situação de instabilidade financeira.

Além disso, muitas emendas são destinadas a investimentos pontuais, como a compra de equipamentos ou reformas de unidades de saúde, que não necessariamente contemplam as necessidades estruturais ou recorrentes da gestão municipal. Por exemplo, enquanto uma emenda pode financiar a aquisição de ambulâncias ou tomógrafos, o custo de manutenção desses ativos, bem como a contratação de pessoal qualificado para operá-los, recai sobre o orçamento municipal. Isso pode gerar um desequilíbrio financeiro para municípios que já enfrentam dificuldades para cumprir suas obrigações básicas.

Outro ponto crítico é a ausência de critérios claros e padronizados para a distribuição dessas emendas, o que reforça desigualdades regionais e coloca os municípios em uma posição vulnerável diante de interesses políticos. Municípios que dependem excessivamente de emendas podem acabar moldando suas prioridades locais de saúde em função das demandas e interesses dos parlamentares, e não das reais necessidades da população.

Portanto, embora as emendas parlamentares sejam uma fonte adicional importante de financiamento, sua imprevisibilidade e a falta de alinhamento com as prioridades locais expõem os municípios ao risco de dependência excessiva. Para mitigar esses riscos, seria essencial integrar as emendas em um planejamento mais coordenado e estratégico, além de buscar fontes de financiamento mais estáveis e previsíveis para o sistema de saúde municipal.

Muitas emendas são direcionadas para ações específicas e pontuais. Como isso impacta a sustentabilidade e a continuidade dos serviços de saúde no longo prazo?

Mandarino: A predominância de emendas parlamentares destinadas a ações específicas e pontuais na área da saúde tem um impacto significativo na sustentabilidade e continuidade dos serviços prestados pelos municípios. Embora essas emendas possam atender demandas imediatas, como aquisição de equipamentos, reforma de unidades de saúde ou execução de programas temporários, elas frequentemente não contemplam o financiamento de despesas recorrentes e estruturais, criando desafios para a manutenção e a eficiência dos serviços no longo prazo.

Um dos principais problemas é a ausência de planejamento integrado. Como as emendas geralmente são determinadas pelos interesses ou estratégias políticas dos parlamentares, elas não estão necessariamente alinhadas com os planos municipais de saúde.

Isso pode resultar na priorização de iniciativas que atendem a objetivos pontuais, mas que não contribuem para o fortalecimento das redes locais de atenção à saúde. Por exemplo, a compra de equipamentos sofisticados por meio de emendas pode ser inutilizada caso não haja recursos para treinamento, manutenção ou contratação de pessoal especializado para operá-los.

Além disso, a natureza episódica das emendas cria dificuldades para os gestores municipais no planejamento financeiro de médio e longo prazo. Como os recursos não são garantidos de forma contínua, os municípios ficam vulneráveis a lacunas de financiamento, o que pode levar à interrupção de serviços ou ao subaproveitamento de investimentos previamente realizados. Esse problema é particularmente grave em municípios pequenos ou com baixa capacidade de arrecadação própria, que frequentemente dependem das emendas para manter ações básicas de saúde.

Outro impacto negativo é a fragmentação dos investimentos. Quando os recursos das emendas são aplicados de maneira dispersa, sem articulação com outras fontes de financiamento, eles podem gerar resultados limitados, não promovendo mudanças estruturais necessárias para melhorar a qualidade e a acessibilidade dos serviços de saúde.

Portanto, enquanto as emendas parlamentares podem atender necessidades específicas e pontuais, elas raramente contribuem para a sustentabilidade do sistema de saúde a longo prazo. Para mitigar esses impactos, é essencial que as emendas sejam incorporadas em um planejamento estratégico mais amplo, coordenado com as prioridades locais e nacionais do SUS. Além disso, mecanismos que garantam a continuidade dos serviços após o investimento inicial são indispensáveis para evitar desperdício de recursos e fortalecer a capacidade dos municípios de responder às demandas crescentes da população.

Há evidências de que os municípios conseguem aplicar eficientemente os recursos provenientes das emendas parlamentares na saúde? Quais são os principais desafios?

Mandarino: A eficiência na aplicação dos recursos provenientes de emendas parlamentares na saúde varia amplamente entre os municípios brasileiros e enfrenta desafios significativos que limitam seu impacto. Embora existam casos de sucesso, onde os recursos foram utilizados para atender demandas locais prioritárias ou melhorar a infraestrutura de saúde, muitos municípios encontram dificuldades para aplicar esses recursos de maneira eficiente e alinhada às necessidades da população.

Um dos principais desafios é a fragmentação e falta de planejamento integrado. As emendas, por serem frequentemente destinadas a ações específicas definidas pelos parlamentares, nem sempre se conectam às prioridades estratégicas do plano municipal de saúde. Isso pode levar a investimentos que não são plenamente aproveitados, como a aquisição de equipamentos que permanecem ociosos por falta de recursos para operação ou manutenção.

Outro obstáculo é a complexidade burocrática envolvida no processo de execução das emendas. Municípios menores, que frequentemente dependem mais desses recursos, muitas vezes enfrentam limitações técnicas e administrativas para atender às exigências legais e gerenciais relacionadas à aplicação dos recursos. A falta de capacitação de equipes gestoras, somada a processos licitatórios lentos ou mal conduzidos, pode resultar em atrasos ou até na devolução de recursos ao governo federal.

Além disso, a imprevisibilidade das emendas parlamentares cria dificuldades no planejamento financeiro dos municípios. Como os recursos dependem de articulações políticas e do ciclo orçamentário federal, os gestores locais têm pouca margem para antecipar ou integrar esses valores em um planejamento de longo prazo. Isso dificulta a implementação de políticas estruturais e pode levar a uma dependência excessiva de transferências eventuais, em vez de fontes de financiamento mais regulares e estáveis.

Por fim, a falta de monitoramento e avaliação do impacto das emendas limita a capacidade de aprender com experiências passadas e ajustar estratégias futuras. Muitos municípios carecem de indicadores claros para medir os resultados das ações financiadas pelas emendas, o que prejudica a transparência e a responsabilização.

Embora existam evidências pontuais de boa aplicação dos recursos, os desafios apontados revelam a necessidade de maior integração entre as emendas parlamentares e o planejamento estratégico do SUS. Investimentos em capacitação técnica, simplificação de processos burocráticos e fortalecimento dos mecanismos de monitoramento poderiam contribuir para que os municípios utilizem os recursos de maneira mais eficiente e com maior impacto na saúde pública.

Na sua visão, quais mudanças poderiam ser implementadas para tornar as emendas parlamentares um mecanismo mais efetivo no fortalecimento do sistema de saúde pública?

Mandarino: Para tornar as emendas parlamentares um instrumento mais efetivo no fortalecimento do sistema de saúde pública, seria essencial implementar mudanças estruturais e gerenciais que promovam maior alinhamento entre as necessidades reais do SUS e a aplicação dos recursos. Essas mudanças devem focar em critérios técnicos, transparência e planejamento estratégico, reduzindo a influência de interesses exclusivamente políticos no processo.

  1. Definição de critérios técnicos claros: É fundamental que a alocação das emendas seja baseada em indicadores técnicos e epidemiológicos, como dados de mortalidade, morbidade e cobertura de serviços de saúde. Isso garantiria que os recursos sejam destinados às áreas mais necessitadas, reduzindo desigualdades regionais e promovendo equidade no acesso à saúde.
  2. Planejamento integrado com o SUS: As emendas deveriam ser obrigatoriamente alinhadas aos planos municipais, estaduais e nacional de saúde. Isso exigiria que os parlamentares dialogassem com os gestores locais e seguissem as diretrizes estabelecidas pelo planejamento participativo do SUS, evitando a pulverização de recursos em iniciativas pontuais e desconectadas das prioridades estratégicas.
  3. Fomento à capacitação técnica: Muitos municípios enfrentam dificuldades para gerenciar e executar os recursos de forma eficiente. Investir na capacitação de equipes técnicas e na simplificação dos processos burocráticos associados às emendas poderia melhorar significativamente a eficiência na aplicação dos recursos.
  4. Previsibilidade e continuidade dos recursos: Garantir maior previsibilidade nas transferências das emendas permitiria que os gestores locais as incorporassem em um planejamento de longo prazo, promovendo a continuidade e sustentabilidade das ações financiadas. Isso seria particularmente relevante para programas e serviços de saúde que exigem manutenção constante.
  5. Fortalecimento da transparência e do controle social: Melhorar os mecanismos de monitoramento e divulgação pública das emendas, como a obrigatoriedade de relatórios detalhados e atualizados sobre sua execução, facilitaria o acompanhamento por órgãos de controle e pela sociedade civil. Conselhos de saúde fortalecidos e bem capacitados também seriam fundamentais para essa fiscalização.
  6. Avaliação de impacto: Criar indicadores de desempenho para monitorar os resultados das ações financiadas pelas emendas permitiria avaliar sua eficácia e eficiência. Isso ajudaria a identificar boas práticas e ajustar estratégias para o futuro.

Ao implementar essas mudanças, as emendas parlamentares poderiam deixar de ser um mecanismo predominantemente político e se transformar em uma ferramenta estratégica para o fortalecimento do SUS. Dessa forma, seria possível ampliar o impacto positivo desses recursos na melhoria da qualidade e no acesso aos serviços de saúde, atendendo de maneira mais efetiva às necessidades da população.

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