Por Davi Carvalho

Na imensa engrenagem que move o Sistema Único de Saúde (SUS), o nível regional — esse entrelugar entre o Estado e os municípios — representa não apenas uma escala administrativa, mas um campo onde se disputam prioridades, se constroem consensos (ou não) e se produzem políticas com impacto direto sobre a vida de milhões. É nesse terreno, ao mesmo tempo técnico e político, que se insere o projeto de cooperação técnica entre o Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA), a Secretaria da Saúde do Estado da Bahia (SESAB) e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), cujo foco é o aprimoramento da governança regional no estado.

Apresentado nos dias 3 e 4 de abril de 2025, na primeira reunião de trabalho do projeto, o plano parte de um diagnóstico claro: o atual arranjo federativo brasileiro, pilar do SUS, exige uma permanente negociação entre diferentes esferas de poder — União, estados e municípios — para que os princípios da universalidade, integralidade e equidade se materializem no cotidiano da gestão e da prestação dos serviços. Nesse contexto, a governança regional aparece como um desafio estratégico.

O termo “governança” carrega múltiplas definições e expectativas. A apresentação do projeto recorre à literatura nacional e internacional para tratar o conceito como um campo em disputa, moldado pelas transformações no papel do Estado e pelo protagonismo crescente de atores não estatais. Do Banco Mundial às Nações Unidas, passando pela União Europeia e autores brasileiros, emerge uma ideia comum: governar hoje é, antes de tudo, coordenar.

Mas coordenar o quê e quem? A resposta está nos próprios fundamentos do projeto: diferentes atores — públicos, privados, sociais — que se organizam em torno de problemas coletivos complexos, como os da saúde. A governança, nesse sentido, não é uma estrutura fixa, mas um processo contínuo de negociação, compartilhamento de responsabilidades e adaptação às singularidades territoriais. A lógica vertical da administração tradicional cede espaço a arranjos horizontais, em rede, que pressupõem autonomia, confiança mútua e regras claras de interação.

Colaboração em redes

Inspirado em autores como Milagres, Silva e Rezende (2016) e Mendes (2016), o projeto propõe uma arquitetura de governança colaborativa para as Redes de Atenção à Saúde (RAS), capaz de superar a fragmentação que ainda caracteriza a assistência no Brasil. A governança das redes, nesse modelo, é vista como um arranjo organizativo que busca gerar um “excedente cooperativo” — ou seja, resultados melhores do que aqueles obtidos por ações isoladas.

Isso exige repensar as formas de coordenação entre atenção primária, especializada, hospitalar, vigilância, apoio diagnóstico e sistemas logísticos. Envolve também, e principalmente, repensar os papéis dos entes federados e dos demais agentes que atuam nos territórios. A governança eficaz depende da existência de instâncias claras de planejamento territorial, contratualização, monitoramento, controle social, mecanismos de transparência e liderança compartilhada.

Para mapear e qualificar essas instâncias, o projeto recorre a uma metodologia combinada que articula revisão bibliográfica, análise documental e realização de oficinas regionais. Essa triangulação de métodos visa identificar os elementos constitutivos da governança já existentes, seus desafios e as possibilidades concretas de aprimoramento.

As oficinas

Um dos pilares da proposta são as oficinas regionais, pensadas como espaços de escuta ativa, diálogo técnico e articulação política. Em formato de um dia de duração, nos municípios-polo das regiões de saúde, as oficinas reúnem representantes dos municípios, das estruturas estaduais regionais, de consórcios, prestadores públicos e privados, e da sociedade civil. A dinâmica prevê grupos de discussão pela manhã e plenária à tarde, com temas previamente definidos.

Mais do que um espaço deliberativo, as oficinas funcionam como instrumentos de pesquisa qualitativa e de pactuação política. Ao colocar diferentes vozes à mesa, elas possibilitam aferir o grau de autonomia regional e municipal em relação ao uso de recursos, examinar a diversidade e representatividade nos arranjos cooperativos, mapear lideranças políticas e suas posturas, e identificar os condicionantes que dificultam (ou potencializam) a consolidação de uma governança regional robusta.

A premissa é clara: não há modelo de governança aplicável universalmente. Cada território apresenta configurações institucionais, capacidades técnico-políticas e relações intergovernamentais próprias. Por isso, a governança deve ser pensada como um processo em aberto, que se constrói por meio de aprendizado prático, avaliação constante e flexibilidade.

Para além da técnica: política, disputa e potência

O projeto reconhece que governar redes regionais de saúde não é apenas um exercício técnico-administrativo. Trata-se, antes de tudo, de uma disputa política permanente, onde o protagonismo pode ser exercido por diferentes atores e esferas. A apresentação aponta que as decisões em saúde regional podem ser marcadas por relações cooperativas, conflitivas ou centralizadoras. Compreender essa dinâmica é essencial para desenhar estratégias efetivas.

O conceito de governança colaborativa, tal como proposto, tensiona a ideia de que o Estado, isoladamente, possa definir os rumos das políticas. Em vez disso, propõe um Estado em rede, capaz de articular setores, ouvir vozes divergentes, criar espaços deliberativos reais e atuar como indutor — e não apenas executor — de políticas públicas.

Esse redesenho institucional exige não apenas ajustes operacionais, mas uma mudança de cultura. Requer um compromisso ético e político com a participação social, com a equidade e com a transparência. Implica, também, reconhecer os limites da estrutura existente e a necessidade de criar mecanismos duradouros de coordenação que sobrevivam às mudanças de governo.

Um caminho em construção

Em um momento em que o SUS enfrenta desafios estruturais e conjunturais — da crônica subfinanciamento à instabilidade das relações federativas —, investir em governança regional é apostar na resiliência do sistema. O projeto de cooperação ISC/UFBA-SESAB-OPAS oferece uma oportunidade concreta de produzir conhecimento situado, qualificar a gestão e fortalecer as bases de uma regionalização mais democrática e eficaz.

A Bahia, com sua diversidade territorial, cultural e institucional, serve aqui como laboratório vivo de inovação em políticas públicas. A experiência das oficinas, os achados da pesquisa e os pactos que vierem a ser construídos podem inspirar outros estados e contribuir para o debate nacional sobre os rumos do SUS.

No fim das contas, governar bem — e de forma colaborativa — significa reconhecer que a saúde pública é, também, um bem comum cuja gestão exige inteligência coletiva, escuta ativa e responsabilidade compartilhada.

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