Na noite de 6 de agosto de 2024, o Teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo, foi palco de uma celebração inédita da excelência acadêmica brasileira. A primeira edição do Prêmio Jabuti Acadêmico, uma nova premiação dedicada às áreas científicas, técnicas e profissionais, consagrou os vencedores de 29 categorias, distribuídas nos eixos de Ciência e Cultura e Prêmios Especiais. Entre os laureados, um grupo de pesquisadores da saúde coletiva trouxe à luz uma realidade muitas vezes negligenciada: a atenção primária à saúde nas áreas rurais remotas do Brasil.

O livro “Atenção Primária à Saúde em Municípios Rurais Remotos no Brasil“, organizado por Márcia Cristina Rodrigues Fausto, Ligia Giovanella, Aylene Bousquat, Adriano Maia e Patty Fidelis de Almeida, conquistou o prêmio na categoria “Enfermagem, Farmácia, Saúde Coletiva e Serviço Social“. Esta obra, fruto de uma extensa pesquisa debruça-se sobre as complexidades do acesso à saúde em regiões frequentemente esquecidas pelas políticas públicas.

“Para nós o prêmio significa o reconhecimento e valorização de um trabalho coletivo, que teve início em 2017, envolveu vários professores, pesquisadores e alunos de diversas instituições públicas de ensino e pesquisa dedicadas à Saúde Coletiva. Um trabalho intenso e de muito fôlego. Além disso, ter ganhado o Prêmio Jabuti Acadêmico significa ter o reconhecimento do valor da obra em si, mas sobretudo o reconhecimento da relevância da temática abordada no livro. Eu vejo a premiação como uma oportunidade de colocar em destaque o tema da saúde coletiva, em particular do acesso a atenção à saúde para populações cujas necessidades muitas vezes são negligenciadas, invisibilizadas por políticas públicas em função das particularidades do lugar onde vivem”.

Márcia Cristina Rodrigues Fausto, coorganizadora da obra.

Sevani Matos, presidente da Câmara Brasileira do Livro (CBL), organizadora do evento, destacou a importância do prêmio: “O Jabuti Acadêmico inicia seu primeiro ano premiando grandes nomes da literatura acadêmica brasileira, ajudando a reconhecer a riqueza da produção nacional. Estamos honrados em promover este reconhecimento. A CBL reafirma seu compromisso com a valorização da produção acadêmica no Brasil. Esta premiação não só celebra a excelência acadêmica, mas também fortalece nosso papel fundamental na difusão do conhecimento e na promoção da cultura, elementos essenciais para o desenvolvimento de uma sociedade informada e inovadora”.

Marcelo Knobel, curador do prêmio, expressou sua satisfação com o resultado: “Esta noite foi uma celebração da produção científica, técnica e profissional brasileira. O prêmio foi uma grata surpresa para nós e também para o mercado, que, mesmo em sua primeira realização, obteve 1.953 obras inscritas. É um sucesso! Agradeço a toda a equipe que contribuiu para a realização desta inédita edição, bem como ao conselho curador e aos 87 jurados que trabalharam arduamente para eleger os melhores trabalhos”.

O livro premiado, “Atenção Primária à Saúde em Municípios Rurais Remotos no Brasil”, traz à tona uma discussão importante sobre as particularidades e desafios da atenção primária à saúde em áreas rurais remotas do país. A obra é dividida em três partes e 14 capítulos, precedidos por uma introdução abrangente e concluídos com um texto síntese preciso e atualizado.

Ana Luiza d’Ávila Viana, diretora da Plataforma Região e Redes, em sua análise sobre o livro, ressalta:

“O livro será leitura obrigatória e muito prazerosa por todos nós que queremos e lutamos por um horizonte melhor e um ambiente ético, profícuo e solidário de construção de políticas públicas. A obra inova ao olhar para o território brasileiro visando compreender e enfrentar questões seculares do nosso desenvolvimento e de políticas específicas em uma dimensão central, a atenção primária.”

A pesquisa aborda temas como a distribuição geográfica dos serviços de saúde, a fixação de profissionais em áreas remotas, e as particularidades culturais e ambientais que influenciam a saúde das populações rurais. Os autores propõem uma reflexão sobre como adaptar as políticas de saúde às realidades locais, superando a visão tradicional que muitas vezes trata o rural como mero subproduto do urbano.

Um dos aspectos mais inovadores do trabalho é a criação de uma tipologia para os municípios rurais remotos brasileiros. Os pesquisadores desenvolveram seis clusters de tipos de municípios rurais remotos por grandes regiões brasileiras, permitindo uma análise mais precisa e contextualizada das realidades locais.

O livro destaca que a organização e garantia do acesso à atenção à saúde nos espaços rurais faz parte de uma agenda inconclusa nas políticas públicas brasileiras. As mudanças ocorridas no mundo rural, com a inserção de novos atores sociais e alterações nos modos de utilização da terra, dos recursos ambientais e nos estilos de vida, tornam essa discussão ainda mais relevante e urgente.

Os autores argumentam que as singularidades dos contextos rurais são frequentemente interpretadas como obstáculos para o desenvolvimento local, em vez de serem vistas como potenciais para a produção de estratégias que correspondam às particularidades nos modos de organização da vida social. Essa visão limitada contribui para a persistência de desigualdades sociais e a produção de iniquidades.

O trabalho também aborda a evolução das políticas de saúde no Brasil, com destaque para a expansão da Estratégia Saúde da Família (ESF) nos últimos vinte anos. Essa expansão favoreceu o acesso à atenção primária à saúde, inclusive nos menores e mais remotos municípios brasileiros. No entanto, os autores apontam que, apesar dos avanços, ainda existem desafios significativos para a consolidação de uma APS efetiva e equitativa em áreas rurais remotas.

Entre os desafios destacados estão:

  • Barreiras geográficas de acesso aos serviços
  • Dificuldades de contratação e fixação de profissionais de saúde
  • Particularidades étnicas de algumas populações
  • Obstáculos para o acesso à atenção especializada
  • Necessidade de ações itinerantes como parte da organização do trabalho das equipes nas áreas rurais

O livro também discute as recentes mudanças na Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) e seus potenciais impactos na organização da APS em áreas rurais remotas. Os autores expressam preocupação com a flexibilização de alguns aspectos da política, como a presença do Agente Comunitário de Saúde e a carga horária dos médicos, que podem afetar negativamente a qualidade e a continuidade do cuidado nessas regiões.

Um aspecto central da obra é a discussão sobre o conceito de acesso à saúde, que é abordado de forma multidimensional. Os autores utilizam o framework conceitual de Penchansky e Thomas (1981), adaptado por Russell et al. (2013) para contextos rurais e remotos, para analisar as diferentes dimensões do acesso: disponibilidade, acessibilidade, acomodação, capacidade de pagamento e aceitabilidade.

Esta abordagem permite uma compreensão mais profunda dos desafios específicos enfrentados pelas populações rurais no acesso aos serviços de saúde. Por exemplo, a dimensão da acessibilidade não se limita apenas à distância física, mas inclui também a disponibilidade de meios de transporte e os custos associados ao deslocamento.

O livro também dedica atenção especial à questão da força de trabalho em saúde nas áreas rurais remotas. Os autores discutem o impacto de programas como o Programa Mais Médicos (PMM) e seu sucessor, o Médicos pelo Brasil, na provisão e fixação de profissionais de saúde nessas regiões. Eles apontam para os avanços alcançados, mas também para os desafios que persistem, especialmente após as mudanças recentes nas políticas de saúde.

Uma das conclusões importantes do trabalho é que, quanto mais dispersa a população e maior o afastamento, maior a necessidade de se desenvolver serviços de APS mais integrados e abrangentes. Isso é necessário para maximizar as economias de escala, otimizar o uso da força de trabalho em saúde existente e adequar as práticas a contextos marcados por dinâmicas sociais e culturais multifacetadas.

Os autores argumentam que não é possível pensar, organizar e ofertar cuidado em saúde em áreas rurais remotas sem considerar que o conjunto de necessidades, saberes e práticas se articulam com as questões sanitárias e conformam indissociavelmente um mesmo fenômeno social, político, econômico, cultural e ambiental.

O reconhecimento deste trabalho pelo Jabuti Acadêmico não apenas celebra a excelência da pesquisa, mas também chama a atenção para a necessidade de políticas públicas mais inclusivas e adaptadas às realidades rurais do Brasil. A obra premiada oferece perspectias valiosas para gestores, profissionais de saúde e formuladores de políticas públicas, apontando caminhos para a melhoria do acesso e da qualidade da atenção primária à saúde em áreas rurais remotas.

Ligia Giovanella, coorganizadoras do livro, comentou sobre o prêmio: “Este reconhecimento é uma validação da importância de se estudar e compreender as realidades específicas das áreas rurais remotas no contexto da saúde pública. Esperamos que este trabalho possa informar e influenciar políticas públicas mais efetivas e equitativas.”

Aylene Bousquat, também organizadora, acrescentou: “O prêmio nos motiva a continuar nossa pesquisa e advocacy por uma atenção primária à saúde que verdadeiramente alcance todos os brasileiros, independentemente de onde vivam.”

À medida que o Brasil continua a enfrentar desafios na equidade do acesso à saúde, trabalhos como este se tornam fundamentais para informar e orientar as decisões que moldarão o futuro do Sistema Único de Saúde. O Prêmio Jabuti Acadêmico, ao reconhecer esta pesquisa, não apenas celebra a excelência acadêmica, mas também reafirma o papel central da ciência na construção de um país mais justo e saudável.

A premiação do livro “Atenção Primária à Saúde em Municípios Rurais Remotos no Brasil” marca um momento significativo para a pesquisa em saúde pública no Brasil. Ela não apenas reconhece a excelência do trabalho realizado, mas também coloca em evidência a importância de se considerar as especificidades das áreas rurais remotas na formulação e implementação de políticas de saúde.

Este reconhecimento serve como um estímulo para que mais pesquisadores se dediquem a estudar e compreender as realidades diversas e complexas que compõem o cenário da saúde pública no Brasil. Além disso, espera-se que esta premiação possa catalisar um maior interesse e investimento em pesquisas voltadas para as áreas rurais e remotas, historicamente menos estudadas e compreendidas.

O Jabuti Acadêmico, em sua primeira edição, demonstrou seu potencial para valorizar e dar visibilidade à produção acadêmica brasileira de alta qualidade. Ao fazê-lo, contribui não apenas para o reconhecimento dos pesquisadores, mas também para a disseminação de conhecimentos fundamentais para o desenvolvimento do país.

À medida que o Brasil enfrenta desafios crescentes na área da saúde, especialmente em um cenário pós-pandemia, trabalhos como o premiado se tornam ainda mais relevantes. Eles oferecem olhares valiosos e baseados em evidências para informar políticas públicas mais eficazes e equitativas, contribuindo para a construção de um sistema de saúde verdadeiramente universal e inclusivo.

A premiação no Jabuti Acadêmico 2024 é um lembrete da importância de se olhar para além dos grandes centros urbanos e reconhecer as necessidades e potencialidades das áreas rurais remotas na construção de um Brasil mais saudável e justo para todos os seus cidadãos.

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