Publicada nesta última sexta-feira, dia 5 de fevereiro, o boletim da pesquisa ‘Monitoramento das condições de saúde dos ACS em tempos de Covid-19’, desenvolvida pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), traz as condições de trabalho dos Agentes Comunitários de Saúde. Nesta entrevista, a professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Mariana Nogueira aponta as aferições e contextualiza, a partir das principais questões políticas e de gestão, como esses trabalhadores estão atuando na linha de frente da pandemia
Por Viviane Tavares – EPSJV/Fiocruz
1) No primeiro momento da pandemia, como os trabalhadores técnicos, em especial os Agentes Comunitários de Saúde, puderam agir no enfrentamento?
Mariana Nogueira: Os trabalhadores técnicos em saúde estão na linha de frente do enfrentamento a pandemia em diferentes níveis de atenção: na atenção primária, secundária e terciária. No dia a dia, acolhem e cuidam de pessoas com sinais e sintomas de covid-19 nas Unidades de Pronto Atendimento, nas Unidades Básicas de Saúde, nos hospitais, entre outros serviços. Existem mais de 1 milhão e 800 mil trabalhadoras técnicas e auxiliares de enfermagem no Brasil, em torno de 260 mil Agentes Comunitários de Saúde, e muitas outras categorias profissionais técnicas em saúde que contribuem para o diagnóstico, acolhimento, tratamento e recuperação da saúde das pessoas acometidas por covid-19.
Os trabalhadores técnicos em saúde, além de realizarem atividades fundamentais para o cuidado junto a pessoas acometidas pelo novo coronavírus, ainda exercem um importante papel no que se refere à educação em saúde e orientam a população sobre medidas de proteção contra a Covid-19.
Os ACS, nos primeiros momentos da pandemia, intensificaram a sua atribuição de educadores em saúde, promoveram diversas formas de trabalho territorializado para divulgação de informações sobre higienização das mãos, utilização de máscaras, entre outras medidas importantes que reduzem o risco de adoecimento por covid-19.
Os agentes também participaram e articularam ações de apoio às famílias com maior vulnerabilidade social e econômica; assim como em algumas regiões do país contribuíram para o acolhimento e identificação de casos suspeitos junto aos usuários que buscavam a unidade. Mas os ACS enfrentam muitas dificuldades para a realização do trabalho.
2) Quais as principais dificuldades encontradas?
Mariana Nogueira: Muitas dificuldades político-institucionais, organizacionais e também estruturais, determinadas pelas profundas desigualdades sociais e econômicas que sustentam o modo de produção capitalista. Na pesquisa que desenvolvemos, intitulada “Monitoramento das condições de saúde dos ACS em tempos de Covid-19”, obtivemos a participação de 1978 ACS na primeira fase, 884 na segunda fase e realizamos grupos focais na terceira e última fase da pesquisa. Os ACS participantes atuam em seis municípios localizados em três estados do país.
Os resultados revelam insuficiência em quantidade e qualidade de EPIs [Equipamentos de Proteção Individual], desigual distribuição de EPIs no âmbito das unidades de saúde entre os trabalhadores das equipes, sendo os agentes preteridos no recebimento – houve casos de ACS que tiveram que costurar as próprias máscaras-; dificuldade de acesso ao teste para detecção de covid-19; dificuldade de garantir o direito ao afastamento do serviço nos casos de agentes com comorbidades ou idosos que são do grupo de maior risco para covid-19, e até mesmo no caso de adoecimento por covid-19.
Além disso, houve dificuldades em relação a ausência de protocolos definidos para atuação do ACS e o não fornecimento de aparelhos telefônicos e de internet para a modalidade de trabalho remoto que ocorreu em diversas regiões. Os ACS relatam dificuldades estruturais das unidades de saúde, com falta de ventilação e insumos necessários para a higienização das mãos como água, sabão, álcool em gel, entre outros, que revelam o sucateamento das unidades de saúde antes da pandemia.
Uma outra questão relatada pelos ACS e que informa sobre a precariedade das condições de vida da classe trabalhadora que reside em territórios periféricos e favelados é a dificuldade da população realizar isolamento social em territórios em que há grande déficit habitacional, ausência de saneamento básico e com muitas pessoas residindo no mesmo local. A falta de coordenação nacional do enfrentamento à pandemia no SUS foi percebida pelos ACS participantes dos grupos focais, inclusive pelas diversas, desiguais e divergentes respostas institucionais. Além disso, eles também se referiram à ausência de medidas de proteção territorial, como barreiras sanitárias.
Uma outra grande dificuldade se refere a questão de gênero e classe, a maioria das ACS são mulheres e, em uma sociedade patriarcal, acumulam o trabalho remunerado às funções do trabalho doméstico e de cuidado não remunerado dos familiares, vivenciando múltiplas jornadas de trabalho ainda mais intensificadas na pandemia.
3) Qual seria o principal papel dos ACS nesse enfrentamento?
Mariana Nogueira: Os ACS são trabalhadores que possuem complexas atribuições que perpassam a escuta dos usuários, o trabalho territorializado através de ações individuais e coletivas e a realização de visitas domiciliares. Por isto, é fundamental a garantia de condições de trabalho para que o ACS atue tanto dentro das unidades de saúde quanto nos territórios. Os ACS possuem um papel importante na promoção de ações educativas em saúde sobre a covid-19 e sobre medidas de prevenção ao novo coronavírus junto aos usuários, assim como sobre a importância da adesão da população à imunização contra a covid-19.
Outro importante papel do ACS é o registro e a produção de informação em saúde, diagnóstico demográfico, social, epidemiológico e sanitário do território em que atuam que pode -e deve- subsidiar o planejamento de estratégias loco-regionais de controle e enfrentamento da pandemia.
Ademais, os ACS também realizam ações de construção de redes de apoio social nos territórios, promovem o cuidado e acolhimento às demandas dos usuários em articulação com a equipe interdisciplinar. É possível também fortalecer na Atenção Primária à Saúde, através da valorização e da garantia de condições adequadas de trabalho, que o ACS realize ações de vigilância em saúde e siga acompanhando remotamente, e presencialmente – quando for assegurada a imunização enquanto direito de todos pelo SUS – as famílias, reconhecendo as necessidades sociais e sanitárias dos usuários que acompanha.
Portanto, os ACS têm um papel fundamental no acompanhamento de pessoas com comorbidades, com doenças crônicas, na identificação e acolhimento das necessidades sócio- sanitárias da população relacionadas a covid-19, mas também no reconhecimento daquelas necessidades não diretamente produzidas pelo novo coronavírus, mas que foram agravadas no momento da pandemia, como as situações de violência intradomiciliar contra as mulheres e os idosos, o aumento da insegurança nutricional e alimentar das famílias devido a diminuição da renda das famílias e o fim do auxílio emergencial, do alto número de desempregados no país, entre outras que interferem diretamente nas condições de vida, de saúde, da classe trabalhadora e que são expressões das determinações sociais do processo de saúde-doença.
4) A pesquisa que você está desenvolvendo já produziu três boletins e um painel. Quais dados você elenca como os mais reveladores até o momento?
Mariana Nogueira: Estamos desenvolvendo três pesquisas no momento, uma que estamos encerrando e publicamos o terceiro boletim, voltada para o monitoramento das condições de saúde, de trabalho e formação profissional dos ACS, e outras duas que envolvem as condições de saúde e trabalho de outros profissionais da Atenção Primária à Saúde e o processo de precarização da APS.
Em relação à pesquisa específica sobre ACS, produzimos além de três boletins, um painel digital (https://acscovid19.fiocruz.br/painel-eletronico) onde dispusemos os principais resultados encontrados. Em relação à formação profissional dos trabalhadores ACS em tempos de covid-19, um total de 46,9% dos 1978 ACS participantes da primeira fase da pesquisa referiram que a UBS ou secretaria de saúde não proporcionou formação ou treinamento sobre a covid-19 nos meses de abril e maio de 2020, e 32,6% dos ACS indicaram ter havido formação, porém insuficiente. Na segunda fase da pesquisa em que participaram 884 ACS, a maioria também informou não haver formação suficiente nas UBS sobre covid-19 nos meses de junho e julho.
Estes trabalhadores se depararam com a pandemia e com a necessidade de atuar na linha frente usando EPI´s , quando disponibilizados, sem haver uma formação profissionalizante anterior assegurada como política pública. Precisamos destacar este elemento, os ACS são um dos únicos trabalhadores do setor saúde exclusivos do SUS, mas que também não possuem uma formação profissional específica anterior a sua inserção na Estratégia de Saúde da Família. Então houve dificuldades inclusive em relação a paramentação e descarte de EPIs, lavagem das mãos, compreensão dos sinais e sintomas da doença, entre outras.
Houve também relatos sobre falta de água e sabão nas unidades de saúde e álcool em gel disponibilizado em quantidade insuficiente. Na primeira fase da pesquisa 10,5% dos 1978 ACS participantes referiram não dispor de água e sabão na unidade de saúde para lavagem das mãos sempre que necessário e na segunda fase 14,8% dos 884 participantes referiram esta situação.
Em relação ao recebimento de EPI, dos ACS participantes da primeira fase da pesquisa, 14,8% afirmaram que a Unidades Básica de Saúde (UBS) não forneceram EPIs para os profissionais de saúde, e 85,2% afirmaram que houve fornecimento no período de abril a maio. Entre os ACS cuja UBS provêu EPI para todos os profissionais de saúde, 93,8% afirmaram que houve fornecimento de máscara cirúrgica, e 6,2% relataram que não foram disponibilizadas. Os percentuais se alteram quando se trata de fornecimento especificamente para ACS: o não recebimento sobe para 11,1%, uma indicação de desigual distribuição de EPI, neste caso, de máscaras cirúrgicas no início da pandemia. Nos meses de junho e julho essa distribuição desigual também apareceu como resultado do estudo. Em relação às condições de saúde, na primeira fase da pesquisa, 658 ACS responderam ter apresentado algum sinal ou sintoma associado à covid-19 e referiram pelo menos um dos três: perda do olfato e do paladar, febre igual ou acima de 37,8 graus Celsius e dificuldade para respirar nos meses de abril e maio. Entre estes ACS, 80,1% informaram que estiveram afastados do trabalho em algum momento durante o período de abril e maio, porém 19,9% permaneceram trabalhando. Entre estes 658 ACS, 40,9% referiram não ter tido acesso a testagem para detecção da covid-19 nos meses de abril e maio, 59,1% informaram que conseguiram ter acesso. Na segunda fase da pesquisa um importante resultado em relação ao processo de trabalho se refere a maioria dos ACS ter informado a redução das visitas domiciliares, a realização do trabalho de busca ativa e também a adoção, em alguns municípios, do trabalho na modalidade remota ou em escala nas equipes da ESF. Nos grupos focais os ACS afirmaram que não houve fornecimento pelas gestões municipais de equipamentos telefônicos ou internet. Os custos são assumidos pelos próprios trabalhadores que utilizam os seus aparelhos pessoais para o trabalho remoto.
Destaca-se que a maioria dos participantes da pesquisa relatou sofrimento emocional e ter vivenciado a perda de familiares e outras pessoas com quem possuíam vínculos por covid-19. Do total de 1978 ACS participantes da pesquisa, 45,2% vivenciaram a morte de usuários que acompanhavam ou de outras pessoas, por covid-19, com quem mantinham vínculos pessoais; 96,1% dos ACS relataram sofrimento emocional relacionado ao contexto da pandemia no período de abril e maio do ano passado. Entre estes que relataram sofrimento emocional, os sinais mais frequentemente indicados foram insônia; tristeza e angústia. Muitos ACS informaram, em todas as fases da pesquisa, ter experimentado mais de um sinal ou sintoma associado a conjuntura de pandemia, revelando um sofrimento emocional intenso que precisa ser reconhecido. É necessário mobilizar ações de cuidado e garantir a oferta de políticas públicas de atenção à saúde dos trabalhadores. Estes resultados são reveladores das árduas condições nas quais os ACS atuam no enfrentamento à covid-19, precariedades que se aprofundaram no contexto da pandemia e com o avanço de medidas de austeridade fiscal que retiraram financiamento da seguridade social.
5) O ataque ao NASF [Núcleo Ampliado de Saúde da Família] prejudicou no enfrentamento à pandemia?
Mariana Nogueira: Os desmontes no âmbito da APS que ocorreram principalmente a partir da publicação da PNAB [Política Nacional de Atenção Básica] no ano de 2017 compõem um conjunto de medidas implementadas de austeridade fiscal e de aprofundamento da privatização no SUS. A promulgação da nova forma de financiamento da APS, através da portaria 2.979 de 2019, que institui o Programa Previne Brasil, é uma destas medidas que intensifica a focalização da APS, encerra a garantia de recursos financeiros para o NASF, e tem como consequência em muitos municípios a extinção de equipes e demissões de trabalhadores. A pandemia evidenciou ainda mais a importância do trabalho interdisciplinar no SUS, nos diferentes níveis de atenção. Na Atenção Primária o trabalho interdisciplinar é fundamental para a articulação de redes de cuidado e apoio intersetoriais e territoriais, para o estabelecimento de ações de educação em saúde junto a população e de processos formativos para as equipes de saúde.
Na pandemia os trabalhadores do NASF podem contribuir através de uma atuação clínico-assistencial e técnico-pedagógica, apoiando o trabalho das equipes, no suporte e monitoramento de grupos vulneráveis e de risco a covid-19, na realização de ações voltadas à saúde do trabalhador, com a elaboração e divulgação de material educativo em saúde mental neste contexto de pandemia, entre outros. Assim, os municípios em que o NASF foi extinto não contaram com estas importantes iniciativas de acolhimento tanto da população quanto dos próprios profissionais que estão na linha de frente. Portanto, é necessário que a incorporação de trabalhadores no âmbito da política pública de saúde não seja frágil, realizada através de terceirizações ou vínculos empregatícios precários. A ampliação das equipes multiprofissionais, processo necessário para o cuidado territorializado em um país marcado por profundas desigualdades sociais e, portanto, complexas necessidades sanitárias, precisa se dar através de vínculos empregatícios estáveis, através de concursos públicos para os profissionais de saúde, e não através de frágeis políticas de governos.
6) Já é possível avaliar as consequências do Previne Brasil para o quadro encontrado quando chegou a pandemia?
Mariana Nogueira: No âmbito da Câmara Técnica de Atenção Básica do Conselho Nacional de Saúde, produzimos um parecer técnico em que afirmamos que o financiamento adequado da APS está entre as principais estratégias de combate à covid-19, uma vez que a Atenção Primária possui capilaridade para potencializar resultados relacionados à promoção da saúde, prevenção de doenças e cuidados individuais, apoiando e executando medidas sanitárias adequadas ao enfrentamento da epidemia.
O Previne Brasil traz prejuízos para o financiamento das equipes da Estratégia de Saúde da Família, pode provocar prejuízos para o monitoramento das condições da saúde da população, pois induz a implantação de equipes de saúde com um menor número de trabalhadores e prescinde da presença dos Agentes Comunitários de Saúde, que são trabalhadores muito importantes para o controle da infecção por covid-19 nos territórios. Cabe mencionar que o Ministério da Saúde reconheceu que cerca de 1.098 municípios brasileiros poderão perder recursos com o novo modelo de financiamento da APS instituído pela Portaria 2.979/2019. O Previne Brasil, que extinguiu os Pisos da Atenção Básica – fixo e variável – apoia-se no mecanismo de pagamento por captação ponderada, por desempenho e pode comprometer a sustentabilidade de ações territoriais e coletivas na APS. Por não apontar mecanismos de financiamento para a necessária ampliação das equipes ESF, a portaria 2.979/19 é instituída com intrínseca correspondência à Emenda Constitucional 95, que congela os gastos públicos por um período de 20 anos e já retirou mais de 20 bilhões de reais do SUS.
A restrição de recursos prejudica a ação comunitária, o planejamento territorial e a vigilância em saúde, ações que valem para a população como um todo e vão muito além de pessoas cadastradas. A corrida para cadastramento e vinculação das pessoas residentes nos territórios cobertos pelas Equipes de Saúde da Família e de Atenção Primária já mostra seus efeitos no processo de trabalho nesse período de emergência sanitária. Em alguns municípios os ACS tiveram que permanecer realizando cadastros e visitas domiciliares mesmo no momento da pandemia por orientação das gestões locais considerando a nova forma de financiamento.
Em relação ao componente do pagamento por desempenho, o Previne Brasil insere uma lógica de produtividade que constitui articuladamente com outras medidas, como a Carteira de Serviços da APS e a ADAPS [Agência para o Desenvolvimento da APS – criada pela Lei 13958/2019], facilitação para a implantação de mecanismos de privatização do SUS na APS, ao estimular a contratação de empresas privadas para a provisão de serviços ampliando as terceirizações e um modelo de atenção à saúde curativista.
O Conselho de Secretarias Municipais de Saúde do Estado do Rio de Janeiro (COSEMS RJ) publicou uma nota técnicaconstruída a partir do monitoramento das mudanças e impactos decorrentes pelo Previne Brasil, e afirma a perspectiva de impacto financeiro negativo nos municípios. A nota identifica problemas relacionados à pandemia, ao próprio início do Programa, às distorções nas regras de cadastro potencial e à indefinição de parâmetros populacionais para cálculo de cobertura, entre outros.
No contexto da pandemia de Covid-19 a necessidade de reorganização da APS culminou na redução de atendimentos para diversas condições de saúde e do acompanhamento de pessoas com comorbidades e procedimentos.Assim, as projeções apontam para prejuízos na avaliação base para o pagamento por desempenho estipulado por esta nova forma de financiamento da Atenção Primária. Portanto o modelo de atenção comunitário, territorializado, de cuidado vinculado ao planejamento territorial, coletivo e da vigilância em saúde pode ser prejudicado a partir da indução deste conjunto de medidas que apontam para a privatização e aprofundam a focalização da APS, consolidando uma Atenção Primária seletiva pautada por organismos internacionais como o Banco Mundial.
7) Como uma estrutura de atenção primária solidificada poderia ajudar no enfrentamento à pandemia?
Mariana Nogueira: O desenvolvimento da covid-19 é sensível às condições desiguais de vida e trabalho das populações, incluindo habitação/moradia, saneamento básico, distribuição de renda e perfil de acesso aos direitos sociais entre outros. No continente latino-americano, a desigualdade carrega as marcas de uma formação econômica e social capitalista dependente, periférica, patriarcal e escravocrata, caracterizada por intensa precarização do trabalho e persistente negação de acesso à direitos sociais universais, como a saúde pública. A América Latina é a região mais desigual do mundo. Em sistemas universais de saúde, como o SUS, ter a Atenção Primária à Saúde como orientadora de políticas e sistemas de saúde, e como espaço de produção de práticas de cuidado, contribui para a ampliação do acesso ao direito à saúde e para a organização das redes de atenção à saúde, potencializando a capacidade de resposta às necessidades de saúde da população.
Na perspectiva da APS forte, preconiza-se a promoção do estabelecimento do vínculo longitudinal entre trabalhadores do setor saúde e os usuários, assim como a continuidade da atenção nos diferentes níveis de complexidade. O acesso da população às ações e serviços na APS contribui para a resolução de problemas de saúde e prevenção de agravos. Tanto para a promoção de ações voltadas para a imunização contra as doenças, incluindo a covid-19, quanto para a realização de demais ações preventivas, curativas e de promoção da saúde, a APS é o nível de atenção em que se pode produzir práticas coletivas e em equipe multiprofissional para o cuidado em saúde territorializado.
Na Estratégia Saúde da Família (ESF), onde se inserem os Agentes Comunitários de Saúde, é possível a realização das ações de vigilância em saúde e cuidado junto aos grupos prioritários, rastreamento de contatos e produção de informação territorial em saúde, entre outros processos que contribuem para o acolhimento e cuidado junto aos usuários do Sistema.
No entanto, tão importante quanto darmos destaque a potencialidade da APS no cuidado preventivo e na promoção da saúde, é afirmarmos a necessidade da consolidação de sistemas de saúde universais, públicos, e que operem no enfrentamento a lógica da saúde enquanto mercadoria ou bem de consumo privado a ser acessado somente por quem pode pagar. O sucateamento dos sistemas públicos de saúde e a focalização da APS são processos lucrativos para o avanço do mercado privado na saúde.
Portanto, a consolidação de uma APS forte e abrangente requer a necessária consolidação de sistemas universais e públicos, como ocorre em Cuba, por exemplo. Em Cuba houve um número menor de mortes por covid-19 do que ocorrem em favelas da cidade do Rio de Janeiro, pois existe, além de investimento na medicina comunitária e familiar, na organização dos serviços de maneira integrada, do nível primário ao nível terciário de atenção, um governo que a partir de planificação econômica e de grande participação popular organiza as ações de saúde de modo a priorizar a prevenção da doença, a testagem em massa, a provisão de EPIs aos profissionais, o isolamento social enquanto medida assegurada pelo Estado, a proteção social da classe trabalhadora que ratifica ações políticas e econômicas que colocam a vida da população acima dos lucros.
A coordenação nacional do enfrentamento à pandemia, em articulação com os governos municipais e com a participação popular foi fundamental para que através da Atenção Primária fossem realizadas ações em Cuba de comunicação em saúde junto à população a respeito do novo coronavírus; barreiras sanitárias, telemonitoramento de pessoas acometidas por covid-19, isolamento e acompanhamento de contactantes de pessoas acometidas pela doença, rastreamento de casos suspeitos, entre outras ações de acompanhamento da evolução da doença.
O enfoque clínico ampliado e comunitário das ações de saúde na Atenção Primária é imprescindível ao controle da pandemia, mas tem sua resolutividade limitada. O alargamento da resolutividade de qualquer política de saúde depende da construção de ações e medidas que partam da compreensão técnica e política do processo de determinação social da saúde e que assegurem a saúde da classe trabalhadora e sistemas de saúde universais e públicos enquanto prioridades das políticas de Estado. Para tal, é necessário o enfrentamento dos interesses do capital na saúde para afirmar a centralidade da vida da classe trabalhadora em detrimento de qualquer interesse privado e empresarial.